Começo a tamborilar as palavras no computador e logo vivencio a experiência meio banguela de letras que simplesmente não aparecem na tela ou, então, que viram dízima periódica por puro travamento de uma tecla.
Inspirado por uma ira santa nada tecnológica, agito o teclado e bato com ele de quina no tampo da mesa, pronto a testemunhar uma tonelada de detritos (cabelos, migalhas, caspa, ácaros e pelos de gato) saltar dos espaços entre as teclas e ganhar o mundo. Verdadeiro colosso de cracas acumulado ano a ano, documento a documento.
Durante a limpeza, noto algo inusitado: a ausência, no teclado, de duas letras, cujas marcações gráficas impressas nas respectivas teclas simplesmente desapareceram. De tanto que foram requisitados na escrita, enfim, o “A” e o “L” deram adeus ao mundo. Ao seu redor, no teclado de plástico negro, as outras letras brancas permanecem intactas.
Em português, a letra “A” é campeã absoluta de frequência
Encafifado, busco descobrir a razão do sumiço. E aprendo que, em português, a letra “A” é campeã absoluta de frequência, sendo acionada, em média, em 14,63% das vezes em que um dominante da língua resolve se comunicar por escrito usando um teclado. Aprendo também que, se eu fosse holandês, alemão, francês ou inglês, meu teclado provavelmente estaria desfalcado da letra “E”, a mais comum nas palavras dessas civilizações. Holandeses e alemães, aliás, parecem ter uma verdadeira veneração pelo “E”, que é impresso, respectivamente, em 18,91% e 17,40% das vezes em que decidem teclar em idioma pátrio.
Essa história de letras sumidas, concluo, poderia fornecer um bom argumento para uma história policial ou de espionagem. No meu teclado, porém, resta o mistério da letra “L”, que, a despeito de ser usada em apenas 2,78% das vezes na língua portuguesa, também se apagou. Aqui, concluo, a linha de investigação a assumir é outra, personalíssima, uma vez que a tal letra aparece dobrada em meu sobrenome: a culpa pelo sumiço seria, então, do “Apolloni”. A tese, porém, é frágil, uma vez que, no nome completo deste escriba, o “F” também aparece dobrado, o “R” é acionado duas vezes e o “O” em cinco ocasiões – e as letras estão lá, vivinhas da silva, no velho teclado. Em síntese: trata-se de mais um desses pequenos e inúteis mistérios coceguentos da vida que hão de ficar sem resposta.
PS.: Por pura curiosidade, contei os “A” e os “L” no conjunto de letras desta crônica. A primeira letra surgiu em 12,83% dos casos e a segunda, em 4,16% das ocasiões. A conclusão a que cheguei é a de que sou, de fato, um desinibido amante do “L” – seja lá o que isso signifique em termos literários.