Nos últimos meses, vivi uma espécie de drama intelectual noturno envolvendo um smartphone e um bando de livros. Isso porque, certa noite, acabei convencido pelas circunstâncias históricas a trocar o despertador mecânico pelo celular, estimulado por meus próprios argumentos de que o alarme era mais gentil e de que o aparelho podia ter a bateria carregada enquanto esperava para cumprir sua função matinal.

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O celular, porém, acabou se revelando um verdadeiro destruidor da boa leitura. Mesmerizado pela enormidade de estímulos tolos e brilhantes desfilada pela tecnologia, acabei esquecendo e empilhando no criado-mudo os livros que, desde sempre, me haviam servido de travesseiro e trampolim para os sonhos. Forsyth e Camões, Simmel e Simenon, em síntese, andavam levando uma sova do Gmail, do Facebook e da barulhenta versão gratuita de “Angry Birds Star Wars”.

O celular acabou se revelando um verdadeiro destruidor da boa leitura

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O bom acordo (sempre há um bom acordo) veio em uma noite de crise espiritual bibliófila, quando jurei a mim mesmo que nunca mais acionaria o wi-fi no quarto, dedicando as últimas horas intelectuais do dia, religiosamente, às obras impressas. Fiz a promessa e me agarrei a um livro recém-comprado na Livraria do Chain – um romance policial de Peter Robinson mais britânico que um pudim de pão encontrado em uma charneca.

Obra decente, perfeitamente calibrada no cânone do gênero, enriquecida pelo sutil acréscimo de referências musicais salpicadas aqui e ali pelo autor: enquanto matutava no passo-a-passo do assassino do bisturi, por exemplo, o inspetor Banks (o Maigret de Robinson) escutava The Gentle Side, disco de John Coltrane lançado em 1991.

Ele escutava e eu, que lia, fiquei com vontade de escutar também. Para isso, quebrei o voto de restrição eletrônica, acionei o wi-fi do celular e encontrei o tal disco no YouTube. E foi um deleite legítimo – em certa medida, a experiência de uma nova dimensão de leitura. Todos os livros, decretei naquele momento, bem poderiam vir com ao menos uma referência musical que indicasse o estado mental do autor no momento da escrita (a minha, no momento noturno desta crônica, é Ragas and Sagas, de Jan Garbarek e Ustad Fateh Ali Khan).

E, no contexto da descoberta – tão singela e bela quanto a de Dorival Caymmi ao aproximar o ventilador da poltrona e criar um bom lugar “para só pensar em coisas boas”, como ele mesmo resumiu –, o conflito entre a tecnologia digital e a impressa foi para o beleléu.

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