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Rodrigo Wolff Apolloni

O gato é a crônica ambulante

 | Brunno Covello/Arquivo Gazeta do Povo
(Foto: Brunno Covello/Arquivo Gazeta do Povo)

Sentado diante do computador, busco ideias para uma crônica que mereça o valor da sua leitura. Estou lá, parado como um dois de paus diante da esfinge da inspiração, quando uma das gatas da casa entra no escritório atulhado de papel. Bicho preto de olhos amarelos e barriga branca, arquétipo felino trazido, ainda filhote, da Sociedade Protetora dos Animais.

A gata emite um trinado do tipo “estou aqui”, pula do chão para uma pilha de livros, da pilha para a bicicleta encostada na estante e da bicicleta para o meu ombro direito. Vem, encosta o nariz frio na minha bochecha, dá uma cabeçadinha e desce para o teclado esfregando o rabo no meu nariz. Tento pegá-la e ela foge. Antes de desaparecer rumo ao completo silêncio, porém, tem tempo de rolar, lamber-se por dois ou três segundos e sair derrapando pelo assoalho. Fantástico.

Não há nada que o gato faça que não seja absolutamente repleto de sabor

É quando me dou conta de que o gato é a crônica ambulante: não há nada que faça que não seja absolutamente repleto de sabor, das correrias enlouquecidas pela casa às horas passadas dormindo na fruteira vazia ou sob as cobertas, formando um montinho. Atenção plena em forma de bicho, como bem observou um antigo mestre sufi ao ser perguntado por um aluno sobre qual deveria ser a atitude do fiel no momento da oração. “Olhe para o gato! Olhe para o gato!”, apontou ele. E o gato que estava junto no madraçal não lhes deu a menor bola, completamente interessado em um pavão no pátio.

Deus, desconfio, estava em um estado de humor muito peculiar quando criou os bichanos. Se os gatos não existissem, aliás, caberiam perfeitamente em uma obra de Borges – são a própria expressão, pompom com agulha dentro, do realismo fantástico. Não fariam feio diante do basilisco e do dragão chinês, de quem, desconfio, são francos inspiradores. Pense, por exemplo, na mutabilidade das pupilas felinas – olhos de réptil, olhos redondos de criança – ou nas patas almofadadas que escondem ganchos retráteis. Ou, então, em sua eterna curiosidade, que, como li em um almanaque de farmácia, teria inspirado o criador do ponto de interrogação: o sinal seria, apenas e tão somente, a representação gráfica de um gato de costas, interessado pelo mundo lá fora. Instigante.

Enquanto viajo nas idiossincrasias felinas, a gata volta ao escritório e mia um “agora chega! Encha meu pote de água!”, ordem a que atendo prontamente. A crônica ambulante, afinal, merece toda a devoção do cronista.

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