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A propaganda começa com alguém cortando uma cebola roxa com uma faca. Uma mãe, filmada pela filha pré-adolescente com um smartphone de última geração. Close das mãos trabalhando, produzindo rodelas caprichadas, brilho úmido de alimento fresco. Maravilhosas para um sanduíche saudável, a despeito do bafo no consequente.

Segue o filme: a garota mostra o filme ao irmão, que se espanta e o leva aos colegas. As imagens chegam a um professor, em seguida a críticos de arte, publicitários, cinemas e à academia cinematográfica, que premia a jovem por sua extraordinária obra.

É uma verdadeira graça contar com extensões dos sentidos, desde que elas não nos custem os olhos da cara

Fim da história. A cebola é um gozo celestial, a pré-adolescente é um Francis Ford Coppola e, chave do mistério, só é possível transformar rodelas em uma experiência memorável com a câmera de última geração embutida no telefone celular. A propaganda é um pouco estranha, mas, como descubro ao querer falar a respeito, dá conta do recado.

O ponto mais interessante, aos olhos deste cronista, é a possibilidade do exercício de leitura da realidade que subjaz à peça publicitária. Ela, enfim, nos coloca a questão da experiência estética no século 21, momento marcado pela estimulação extrema dos sentidos e pela velocidade de sobreposição dos objetos.

Afinal, ainda é possível chegar à plenitude estética em um único e prosaico fenômeno? A resposta afirmativa – que é a da propaganda - soaria um tanto zen-budista, não fosse o publicitário ter enfiado no meio da história um iPhone 6S (acabo de entregar o santo), aparelho especialmente concebido para propiciar e compartilhar o êxtase.

Diante dessa percepção, restariam ao analista duas perspectivas. A primeira, de que estaremos definitivamente perdidos se passarmos a depender das novas tecnologias para vivenciar o belo em profundidade. A segunda, de que nós e a tecnologia somos uma coisa só, e que a beleza percebida não é, necessariamente, mediada, mas plenamente vivida também a partir da máquina.

Como não tenho tendência a apocalíptico, descarto a primeira hipótese por acreditar que não perderemos a capacidade do êxtase estético, mesmo quando expostos a um processo de massificação: é preciso, apenas, desligar o celular de vez em quando e sentir o cheiro da cebola. Quanto à segunda, é uma verdadeira graça contar com extensões dos sentidos, desde que elas não nos custem os olhos da cara e nem se sobreponham, como fim, à própria realidade. Algo que, confesso, é difícil em relação a smartphones de R$ 3,8 mil que se transformaram em fetiche. Difícil, mas não impossível – basta usar a razão.

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