O Setor de Epidemiologia da Secretaria de Estado da Saúde, a Sesa, no velho bairro Rebouças, em Curitiba, desconhece o sentido da palavra rotina. Ali trabalham nove profissionais, entre médicos e enfermeiros. Não usam jaleco branco e estetoscópio, como nos famosos seriados americanos ambientados em hospitais. Antes, andam às voltas com planilhas, mapas do Paraná, e-mails, videoconferências e telefones sempre ocupados.
A média de cada atendimento beira 45 minutos, nunca menos de 15 vezes por dia. A atenção tem de ser máxima: das meningites, passando pelas caxumbas ou tuberculoses, tudo desembarca naquela sala. A depender do que se ouve do outro lado da linha, pelo menos três qualidades precisam ser acionadas num único suspiro – clareza na fala, calma para indicar o que fazer primeiro e capacidade de cultivar amigos. “Me chama a ‘Juliana de Londrina’, por favor”, podem sugerir, ao recorrer a uma profissional hábil em estancar um surto.
O Setor de Epidemiologia funciona à base de dados. O alerta pode soar a qualquer momento e exigir ação a jato. Com base nas informações, são acionados novos protocolos, técnicas e informes para os comitês científicos. Depois é mobilizar os agentes. Quanto mais pares, melhor. Cabe a eles ajudar conter as doenças como a varicela – que registrou 100 surtos ano passado. “Sempre digo que se em ‘Perdidos do Sul’ tem uma pessoa com mancha na pele, a gente tem de saber o que é”, reforça a médica Júlia Cordellini.
Não raro, é preciso investir pesado no próprio médico. O abandono da prática de tocar o paciente e pedir que tire parte da roupa traz agravantes. Uma campanha do governo não faz volteios: “Profissional de saúde – tuberculose ainda mata”. Até marcador de livro foi impresso, para motivar o diagnóstico precoce da doença, que teve 2.181 notificações em 2015. Teme-se que haja aumento, pois todas as atenções estão voltadas para o zika.
Há o que festejar. A hanseníase, por exemplo, diminui u. Passou de 886 casos em 2013 para 751 (2014) e 693 (2015). Como os índices se registram apenas casos curados, os dados dos dois últimos anos não são conclusivos.
Muitas vezes, os epidemiologistas que trabalham na central da Sesa só conhecem seus interlocutores pela voz. Há quilômetros entre eles. As parcerias por cabos óticos se formam nos momentos de crise, quando o profissional que está aqui consegue ganhar um profissional de saúde que está lá, cumprindo expediente numa das 22 regionais que cobrem 399 cidades paranaenses. A muitas delas só se chega por estrada de chão, ao custo de comer muita poeira, durante horas em que só vê campos de soja de todos os lados.
A “Heloísa de Apucarana” e a “Patrícia de Paranaguá” estão dispostas a fazer a viagem, não raro tendo de convencer seus superiores de que acompanhar alguns casos pessoalmente é preciso. Vão aos ranchos conferir se os medicamentos estão sendo tomados. A epidemiologia é assim – uma luta contínua contra doenças que muitos julgam extintas, só que não.
Na estrada
“Temos de formar redes”, repetem os profissionais da epidemiologia. É a expressão que mais se ouve nessas negociações entre matriz e filiais da Vigilância Epidemiológica – como gostam de dizer. As redes podem incluir um agente carcerário, um presidente de associação de bairro, mas as hierarquias são rígidas. Diante das evidências – ou suspeitas – de um surto qualquer, a regra é sempre remeter aos líderes das regionais de saúde e seus agentes. Se preciso for, a equipe orienta servidores necessitados; quase sempre é preciso correr atrás de recursos – como ambulâncias e socorro de especialistas, sempre para ontem. Em alguns casos, a turma da Central larga os telefones e cai na estrada.
“Se a gente está na realidade, percebe os tabus, as crendices, porque às vezes eles não acreditam que aquilo está acontecendo”, comenta o enfermeiro e professor universitário João Luís Crivellaro, da equipe da Sesa. “As distâncias é o que mais me incomodam. Queria sempre estar no local do surto. Acredita que tem quem diz que a hanseníase acabou?”, ilustra a hebiatra Júlia Cordellini, uma das profissionais do grupo.
A fogueiras que apaga não costumam ser baixas, mas ainda assim valem cada incursão pelos sertões do Paraná. Júlia “anda atrás da hanseníase”; Betina Alcântara Gabardo, da tuberculose; João , da varicela – para citar algumas enfermidades às quais a turma da epidemiologia fica rotulada. À revelia das tensões que os casos envolvem, a associação entre o nome e pessoa provoca descontração. É preciso. Do contrário, estariam tremendo até hoje ao lembrar do surto de influenza num presídio na região de Cascavel, ano passado. Para impedir as visitas intimas, foi preciso recorrer ao prefeito. Não houve rebelião.
Em 2013, João Luís Crivellaro partiu em comitiva para Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras, no sudoeste. Era preciso acompanhar o surto de varicela que assustava numa reserva de índios caingangues, guaranis e tamoios. Foi uma semana para não esquecer. “Se tem uma coisa que não falta para os indígenas é vacinação. Aquilo não fazia sentido”, conta. A investigação não levou João apenas à realidade de doses acondicionadas como se fossem sacolés e aplicadas como que por crianças brincando de médico. Fez também com que visse o surto como um dos muitos buracos negros daquela comunidade exposta à exploração sexual de crianças e adolescentes, ao alcoolismo, às DSTs e uma panela de pressão, tantos os embates culturais. “Não ser pai ou mãe aos 17 anos é atestado de incapacidade para os jovens daquele lugar”, conta. O estágio na aldeia lhe valeu por uma graduação.
A pneumologista Betina. 53 anos, não precisou ir tão longe quanto seu companheiro de trabalho. Ano passado, integrou-se às equipes que batem ponto em Paranaguá, no litoral, onde a dengue perdeu o controle. Foi como rever a cidade de veraneio pelo avesso. Desconheceu-a. “Entrei em espaços indescritíveis. Nunca pensei encontrar pobreza tão extrema, aqui do lado. Vi agentes enfrentando aguaceiros para ministrar remédios”, conta. As histórias de expedição se repetem, em altíssima voltagem. As vividas e as ouvidas. Nas longas conversas ao telefone com agentes e saúde sempre sobram uns minutinhos para uma partilha.
Júlia, João, Betina – e também Alice Tisserant e Viviane Serra Mellanda, que participam da Vigilância Epidemiológica – não escondem que costumam ser rendidos pela emoção, mas insistem que destreza é gênero de primeira necessidade. “Diante de um surto, todo cuidado é pouco”, diz a eloquente Júlia, uma expert em cartilhas de manejo de saúde. Ela ensina: 1) não se deve prescindir das lideranças locais, seja o pajé ou o diretor da escola; 2) deve-se chegar “com jeito”, aplicar um método, não gerar pânico e evitar rumores; 3) mostrar segurança – agir pela emoção “queima” as resistências da comunidade.
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