Uma pessoa que furta poucas barras de chocolate deve ir para a cadeia? E se os objetos do furto forem chicletes? Ou mesmo uma garrafa de bebidas (talvez apenas para se embriagar e tentar esquecer a própria miséria)? Em um país de contrastes como o Brasil, questões como essas são frequentemente levadas à Justiça e respondidas de maneiras diversas pelos magistrados. Como são casos de natureza aparentemente insignificante, que poderiam dispensar a movimentação da máquina judiciária, muitos deles são rejeitados e declarados atípicos (não são considerados crimes) com base em um instituto popularmente conhecido como "princípio da insignificância".
Na semana passada, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) aplicou o princípio da insignificância à tentativa de furto de cinco barras de chocolate, no valor de R$ 20, de um supermercado Habeas Corpus (HC) nº 98.152. O acusado, de Minas Gerais, fora condenado a um ano e quatro meses de reclusão pelo ato. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia libertado o réu, ao reconhecer a extinção da punibilidade do ato (apesar de criminoso, o ato não poderia ser punido), mas o STF foi além: ao acolher o princípio da insignificância de maneira ampla, reconheceu a inexistência de crime. Assim, o acusado voltou a ser considerado primário o que não ocorreria se apenas a punibilidade fosse extinta. "O reconhecimento da insignificância da conduta praticada pelo réu não conduz à extinção da punibilidade do ato, mas à atipicidade do crime e à consequente absolvição do acusado", afirmou em seu parecer sobre a matéria o subprocurador-geral da República, Wagner Gonçalves.
Segundo o relator do caso dos chocolates no STF, ministro Celso de Mello, o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado que não represente "prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social". Mas e quem tem seus bens ou produtos furtados (ainda que insignificantes), fica no prejuízo por causa de decisões como essa? Segundo o promotor de Justiça Paulo César Busato, não. "O fato de que casos como esse sejam afastados da discussão penal, não impede que as vítimas manejem as ações civis para a recomposição do seu patrimônio, ou seja, os casos não ficam 'impunes'. É possível a atuação do direito e a atuação do Estado. Só não se deve é usar o instrumento mais gravoso de que o Estado dispõe, ou seja, o direito penal, para uma coisa dessas. É necessário reservar a prisão para aqueles que efetivamente a merecem", afirma leia entrevista.
Antecedentes
Não basta que o bem seja de pequeno valor para que se permita a aplicação do princípio da insignificância. Em um caso envolvendo o furto de caixas de chicletes (avaliadas em menos de R$ 100), outro ministro do Supremo, Marco Aurélio de Mello, negou neste mês o pedido liminar no HC nº 98.944, também de Minas Gerais. O motivo: a acusada era reincidente. "Realmente, o prejuízo advindo do furto foi de pequena monta", afirma o ministro em sua decisão. Mas, segundo ele, além de não se tratar do furto famélico (quando a pessoa rouba para saciar a fome), o fato de a acusada já ter sido condenada por outros crimes impede, ao menos na fase preliminar, "acionar o instituto da bagatela" como também é chamado princípio da insignificância.
Para ser agraciado com a aplicação do princípio da insignificância, não basta, contudo, ter uma ficha limpa. Em abril deste ano, em um caso de furto de três garrafas de bebidas alcoólicas e alimentos (no valor de cerca de R$ 90), o TJ-PR não aplicou o princípio da insignificância a um réu primário. Em sua decisão, a corte pondera que, apesar de não ter antecedentes, o réu tem "péssima personalidade e conduta social".