"Meu delírio já não é tão grande"
O advogado Valerio de Oliveira Mazzuoli, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, é uma das principais vozes contra a prisão civil do depositário infiel. Seus estudos sobre o tema foram citados pelos ministros do STF na decisão desta semana.
Impactos da decisão
Com o julgamento desta semana, diversos casos de prisão de depositários devem ser revistos pelo Judiciário. Em uma pesquisa de jurisprudência no site do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), encontra-se 185 decisões envolvendo os termos "prisão" e "depositário infiel" no ano de 2008. Em uma delas, do mês passado (HC nº 0502628-6), a Segunda Câmara Cível do TJ-PR foi unânime ao admitir a prisão de um depositário de Maringá. O advogado do depositário e professor da Universidade Estadual de Maringá, Roosevelt Maurício Pereira, ajuizou um recurso extraordinário (junto ao STF) contra a decisão do TJ-PR no início desta semana antes do posicionamento do Supremo. Agora, ele espera que seu cliente se beneficie do entendimento do STF e não tenha a prisão decretada.
Contudo, Pereira faz uma ressalva ao posicionamento da Corte. Para ele, os tratados têm status constitucional e sequer precisariam passar pelo processo de votação das emendas constitucionais. "Entendo que a ratificação de tratado internacional em matéria de direitos humanos integra sem maiores formalidades o rol dos Direitos e Garantias Fundamentais do artigo 5º da Constituição Federal", afirma.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quarta-feira que é ilegal a prisão do depositário infiel prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal (CF). Ou seja, a partir de agora, a única prisão por dívida admitida pela Corte é a decorrente de inadimplência de pensão alimentícia. A pacificação desse entendimento pelo STF era dada como favas contadas no início deste ano, mas um pedido de vistas, do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, suspendeu o julgamento em março. Três processos foram apreciados em conjunto: o Habeas Corpus (HC) nº 87.585 e os Recursos Extraordinários (RE) nº 466.343 e 349.703. Esse último, arrastava-se há seis anos na Corte.
O posicionamento do STF baseou-se na tese de que os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que proíbe a prisão por dívida, salvo a de pensão alimentícia são "supralegais", hierarquicamente superiores às normas infraconstitucionais (que não estão previstas na CF). A atribuição de força constitucional aos tratados, contudo, não foi aprovada pela maioria dos ministros. E essa foi a grande discussão no julgamento: que status conferir aos tratados sobre direitos humanos ratificados antes das alterações trazidas pela Emenda Constitucional (EC) nº 45, de 2004 (o Pacto da Costa Rica é de 1969). Isso porque a EC acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da CF e, desde então, os tratados sobre direitos humanos terão status constitucional desde que passem pelo processo de aprovação, no Congresso, das emendas constitucionais.
A tese derrotada, a de que os tratados anteriores têm status constitucional, foi defendida pelos ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie. "A Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais", disse o ministro Cezar Peluso, ao lembrar que os direitos humanos são direitos fundamentais com primazia na Constituição.
Já o entendimento vencedor, segundo o qual os tratados têm status "supralegal", foi orientado pelo ministro Gilmar Mendes e seguido pelos ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Menezes Direito. De acordo com Gilmar Mendes, a equiparação à Constituição dos textos dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário seria um "risco para a segurança jurídica". Segundo essa corrente, para ter força constitucional, mesmo os tratados anteriores à EC nº 45 devem seguir o rito das emendas constitucionais.
Assim, a prisão do depositário infiel não foi considerada inconstitucional, pois sua previsão segue na Constituição (que é, segundo os ministros, superior aos tratados), mas, na prática, passou a ser ilegal. "Na prática, a decisão veio dizer que não existe mais prisão de depositário infiel no Brasil, pois as leis que operacionalizam esse tipo de medida coercitiva estão abaixo dos tratados internacionais de direitos humanos", explica o advogado Valerio de Oliveira Mazzuoli, autor da obra Prisão Civil por Dívida e o Pacto de San José da Costa Rica (Editora Forense) veja entrevista abaixo.
Modalidades
Em regra, o depositário pode ser constituído por contrato de depósito ou por decisão judicial (depositário judicial), e será infiel quando descumprir os termos firmados. Há, ainda, uma terceira possibilidade de existência de um depositário infiel: em contratos de alienação fiduciária (quando, por exemplo, em financiamentos de automóveis, a propriedade do veículo fica com o financiador, até que o devedor termine de pagar pelo carro). Conforme o Decreto-Lei nº 911/69, em caso de inadimplência, o credor pode converter uma ação de busca e apreensão mal-sucedida em ação de depósito. Como depositário infiel, o devedor teria de pagar ou devolver o veículo, para não ser preso.
A decisão do STF alcança todas essas modalidades de depósito dois dos processos analisados, inclusive, tratavam de casos de alienação fiduciária. "O corpo humano, em qualquer hipótese (de dívida) é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o corpus vilis (corpo vil), sujeito a qualquer coisa", afirmou o ministro Cezar Peluso.
Súmula revogada
Com a decisão desta semana, o STF revogou sua Súmula 619, segundo a qual "a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".
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