• Carregando...
O gaúcho Paulo Scott retorma o dilema do índio em uma cultura urbana | Fernanda Chemale/Divulgação
O gaúcho Paulo Scott retorma o dilema do índio em uma cultura urbana| Foto: Fernanda Chemale/Divulgação

Desde Maíra (1977), de Darcy Ribeiro, a questão indígena não aparecia como centro de um romance contemporâneo de projeção nacional. Nossa literatura se fez caminho para a distância, um caminho de tema e de linguagem. Com Habitante Irreal (Alfaguara, 2011), Paulo Scott retoma, em termos atuais, o dilema do índio, cada vez mais forçado a desposar o urbano. Trata-se de um romance forte, com viés político e amoroso, em que experimentação de linguagem (Scott é também poeta) e realidade não se excluem.

Um militante petista de Porto Alegre, no final dos anos 1980, cruza com uma jovem índia num dia de chuva. A chuva é uma das metáforas do livro. Chove muito ao longo da vida dos personagens desta história cheia de dramas. Para se manter fiel a seus ideais, Paulo (o militante) tem que dar carona para Maína – eis seu nome. E não só isso, tem que tentar fazer alguma coisa para melhorar a vida dela e a de seus familiares. O idealismo leva a uma intervenção desastrosa num universo já precário, e ele termina por engravidá-la. Ao ser baleado num confronto com a polícia, desiste daquele sonho.

Maína coleciona papéis velhos para aprender a ler. Pela linguagem e pelo amor com Paulo, descortina um outro mundo. Abandonada, suicida-se, não sem deixar o filho bastardo a um casal de pesquisadores bem intencionados, mas com uma visão acadêmica da situação social.

É este filho – Donato – o personagem principal do romance. Educado num colégio internacional em São Paulo, ele vai adquirindo a linguagem do império (o inglês) e hábitos totalmente brancos, chegando a defender a absorção dos índios pela cultura dominante. Isso se efetiva com a morte do pai adotivo, quando ele possui a madrasta, ocupando o lugar do outro. Entre decepções, tragédias e coincidências, ele tem que perder a máscara civilizada para encontrar-se. Na volta a Porto Alegre, a mudança da família é queimada num acidente com o caminhão da transportadora; só lhe resta agora o vazio da antiga casa do padrasto. Poderia repetir uma passagem de Maíra: "Aqui estou na minha aldeia, devolvido a ela, mas não devolvido a mim mesmo". No caso dele, nem aldeia havia mais, pois sua mãe morava num acampamento de beira da estrada.

Donato é, no entanto, devolvido à sua história por meio de documentos e imagens deixados pela mãe. Herdando pelo sonho as tradições ancestrais de canto, transmuda-se em feiticeiro urbano. Constrói uma máscara de madeira, e entoa suas canções pela cidade, desempenhado performances antropológicas para restaurar-se como sujeito – pois até então havia sido mero espectro. A sua condição de índio não é exercida num retorno à aldeia – ele é um mestiço, uma pessoa entre dois mundos –, mas nessas aparições públicas. Torna-se um artista de si mesmo, dos de sua origem, vagando pelas ruas em uma identidade primitiva. É a selva ambulante, o mundo que, destruído, ainda vive.

Como parênteses a esta história, há o que poderíamos chamar de narrativa externa, a da própria escrita do romance, que só se revela no último capítulo, em uma das muitas notas de rodapé que introduzem sempre um fundo falso. Paulo Scott cria este artifício para que o leitor descubra que o romance é na verdade um grande teatro vivo, onde a existência está sendo encenada. Aqui, reconhecemos a semelhança entre o narrador e o autor na concepção da arte como uma forma desencantada de se engajar nas dores coletivas.

A arte como uma militância sem propósito prático (avessa à ocupação de cargos), como uma utopia desesperançada, fazendo da habitação simbólica um caminho para a autenticidade.

Serviço

Habitante Irreal, de Paulo Scott. Alfaguara, 262 págs. Romance.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]