"Com uma situação da minha nova vida eu já me acostumei a cara de espanto das pessoas. Elas mal chegam perto de mim. Pensam que eu vou quebrar", diverte-se Rodrigo Board, 22 anos, paraplégico depois de um acidente com motocicleta, em Colombo, região metropolitana de Curitiba, no início da primavera de 2008.
A descrição do acidente que vitimou Rodrigo é impressionante, como de todo o resto: uma pirueta com a moto fez com que seu pescoço batesse numa estranha mureta de cimento construída na calçada, por um morador imprudente, causando-lhe danos irreversíveis na coluna.
Quando acordou no hospital cinco dias depois da queda achou que estava sendo zoado pelos amigos e tentou se levantar da cama. Caiu com tudo no chão. Foi assim que descobriu a paralisia. "Os médicos me mandaram para casa, para morrer ao lado da minha família. Eu tinha 42 graus de febre. Não ia sobreviver."
O choque de saber da deficiência não foi o bastante. No dia a dia, ao ter de ser cuidado pela mãe, Fátima, 42, nas necessidades mais básicas, percebeu que a vida numa cadeira é um susto por hora. "Tem de sobreviver." Daí não ligar mais para a cara de surpresa dos outros ao verem o jovem, com pinta de galã, pilotando uma cadeira. Não faz mal. Ele mesmo se impressiona com a prova de obstáculos que tem de enfrentar. "Minha única esperança são as células-tronco..."
Rodrigo Board nunca trabalhou como motoboy. A moto para ele era um modo de vida e um meio de transporte para chegar ao Bacacheri, onde trabalhava. Seu sonho era correr na categoria free style. Quando tudo aconteceu, estava treinando para o futuro. Hoje, os planos são outros: passada a fase crítica de escaras, fístulas, sondas e maratonas em busca de tratamento especializado o que o traz de Cerro Azul, cidade que lhe oferece parte da assistência, até a Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (ADFP), no Cristo Rei, a cada 15 dias vai voltar a estudar.
A escola foi abandonada na quinta série. Vieram os subempregos em supermercados e o interesse pela mecânica. À maneira dos mais de 70 mil motoqueiros da região metropolitana, vinha até Curitiba trabalhar de moto, numa oficina. O passado ficou por ali para o garoto de 1,90 metro, articulado e namorador.
O mais surpreendente em Rodrigo é a ausência de revolta. Os planos de ser corredor profissional foram substituídos pelo de cursar Arquitetura. "Vou construir casas adaptadas", diz. E até uma paquera vem por aí. "Ela me disse que sexo não é tudo", confidencia o rapaz que cativa a turma da associação e se tornou uma esperança para os motoqueiros acidentados ainda em cueiros. Conversar com o moço equivale a dar um pé na depressão.
Persistência
É o caso do santista Dirceu Hassan, 41 anos, morador de Colombo, como Rodrigo à época do acidente. Em fevereiro de 2009, Dirceu ficou pendurado pelo pescoço nas guias de um trevo de Colombo. Trabalhava como segurança e estava a serviço, no atendimento de uma emergência. Consciente o tempo todo, chegou a pedir um cigarro enquanto esperava socorro.
Não era um acidente como outros. Difícil não se comover com a história de Dirceu. Diante da gravidade do caso, os médicos deram-lhe três meses de vida e o mandaram para casa. Mas sua irmã e cuidadora, a professora da rede municipal Dinalva Monteiro, 54 anos, não se deu por vencida. Ao mostrar as radiografias para o ortopedista Luiz Gustavo DalOglio da Rocha, descobriu que coluna tinha sido prensada, e não fraturada.
Àquela altura, no entanto, o estado de Dirceu só piorara: escaras, infecções e debilidade física impediam as fisioterapias intensivas e o caso se agravou. Com o corpo em feridas, movendo um pouquinho de um único braço, o ex-fisioculturista é pele, osso e lágrimas convulsivas.
Dinalva, seu marido e duas adolescentes da casa uma delas filha de Dirceu se revezam nos cuidados ao doente. Uma rede se formou em Colombo para garantir transporte, fraldas e remédios para aquele homem então recém-chegado à cidade. Sua esperança: vencer as infecções e recuperar a parte que ainda lhe cabe de capacidade motora. Rodrigo Board que já passou por isso telefona para o amigo imóvel, diz-lhe coisas engraçadas, faz planos para daqui um tempo. A tal da camaradagem entre motoqueiros e motoboys resiste ao tempo ruim.
Em comum, motoqueiros e motoboys acidentados têm a ojeriza ao transporte sobre rodas. O segurança Edimárcio dos Reis, 36 anos, três vezes acidentado, olha para a foto da mulher e do filho, ao lado da cama que ocupa no Hospital do Trabalhador, diz que nunca mais sobe numa moto. Ele esteve sob risco de amputação.
Mas não é raro saber que, sem alternativa, muitos voltam à labuta. "Há quem monte de lado, driblando as sequelas", como conta o fisioterapeuta Luiz Bertassoni Neto. Rodrigo dos Santos Cardoso, 27 anos, morador de Mandirituba, se alista entre esses. Ele colidiu com um ônibus da firma onde trabalhava, meses atrás. Por pouco não perdeu a perna hoje disforme, debaixo de uma mancha preta e com cicatrizes de apavorar um socorrista experiente.
Rodrigo sabe que não volta ao batente tão cedo. "Mas não penso em abandonar meu trabalho", diz o hóspede do Hospital do Trabalhador. Não é difícil imaginá-lo, daqui um tempo, entre os motofretistas que fazem curso no Sest/Sanet. São quase todos ex-acidentados. Mas ainda reservam suspiros à vida livre sobre rodas e dão o sangue em empresas que oferecem "entrega direta", "urgentes" e usam palavras como fly e express no nome. Numa delas, salta aos olhos o adesivo na caixa traseira: "manhã tarde noite". Vá entender. (JCF)
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