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GEADA NEGRA 40 ANOS

O mais longo de todos os invernos

Antônio Pereira da Silva, no Sítio Cercado: ex-agricultor é referência em cafeicultura na vila. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Antônio Pereira da Silva, no Sítio Cercado: ex-agricultor é referência em cafeicultura na vila. (Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo)

“Esse é do Norte, aquele é do Norte... E eu nem sabia disso”, comenta a líder comunitária Palmira de Oliveira, uma das criadoras do Mupe – Museu da Periferia, ao apontar as casas da antiga Vila Cachoeira, no bairro Sítio Cercado, em Curitiba, onde moram alguns dos muitos órfãos da Geada Negra, grupo que se mudou para Curitiba pós-1975, assim que decretada a falência da agricultura cafeeira. Os 2 milhões de hectares – ocupados por 850 milhões de pés – ficaram reduzidos a zero, uma verdadeira tragédia acima do “paralelo 24”, ponto em que, pensava-se, as temperaturas polares nunca chegariam.

Com o tempo, os órfãos passaram a ser chamados pelo genéricos de “nortistas”. Não eram propriamente uma novidade na capital. As primeiras levas migratórias do campo foram iniciadas na década de 1950-1960, e culminaram na década de 1970. Somando os dois períodos, podem ter chegado a 200 mil pessoas. O número é incerto – mas é fato que os recém-chegados mudaram o perfil da cidade onde o leite ficou “quentchi”.

Os “novos curitibanos” tinham origens baianas, paulistas ou mineiras; traziam a organização comunitária nas fazendas de café – o que os teria levado a resistir às engrenagens da cidade grande; traziam instrução básica aprendida nas colônias e se fixaram sobretudo nas regiões Sul e Leste, onde havia emprego e lotes baratos para compra. Estavam todos recomeçando, afinal.

Grosso modo, pode-se afirmar que quase metade de Curitiba é um pedacinho do Norte Pioneiro ou do Norte Novo, assim como também um pouco dos estados de origem dos moradores. Entre 2006 e 2008, ao fazer um grande mapeamento sobre as manifestações culturais populares da capital, o antropólogo Ozanam de Souza, da Casa da Memória, se surpreendeu ao encontrar, por exemplo, grupos do Folia de Reis, entre outros indícios dessa contaminação. Sem falar nos pés de café, plantados nos quintais, sinal que Palmira agora deu de observar, de modo a saber de onde vêm seus vizinhos.

O pedreiro José Rodrigues Braga Filho, 63 anos, mora no Sítio Cercado. Sua casa é referência - tem um grande pé de café na frente, espécie de RG do morador. José cresceu numa lavoura de café - a Fazenda São Gabriel - em Jacarezinho, no Norte Pioneiro. Dividia a lida com outras 60 famílias. Um ano depois da Geada Negra sua família desistiu das roças e se mudou para São José dos Pinhais. Foi o início de sua saga urbana. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

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O pedreiro José Rodrigues Braga Filho, 63 anos, mora no Sítio Cercado. Sua casa é referência - tem um grande pé de café na frente, espécie de RG do morador. José cresceu numa lavoura de café - a Fazenda São Gabriel - em Jacarezinho, no Norte Pioneiro. Dividia a lida com outras 60 famílias. Um ano depois da Geada Negra sua família desistiu das roças e se mudou para São José dos Pinhais. Foi o início de sua saga urbana.

José Rodrigues Braga Filho cobre o pé de café na frente de sua casa - proteção para a planta nos dias frios. É preciso subir na escada, depois num muro e desviar da antena. A casa do pé de café é referência na Rua Ourizona, Sítio Cercado. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

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José Rodrigues Braga Filho cobre o pé de café na frente de sua casa - proteção para a planta nos dias frios. É preciso subir na escada, depois num muro e desviar da antena. A casa do pé de café é referência na Rua Ourizona, Sítio Cercado.

Palheiro

À revelia de ser um marco histórico que define o Paraná, a Geada Negra goza de uma estranha invisibilidade. É lembrada nas efemérides da imprensa a cada cinco anos, mas há indícios de que goza de pouco prestígio nos discursos escolares e cívicos, por exemplo. A líder nunca tinha ouvido falar no assunto. Nem o historiador Fabiano Atenas Azola – até ser convidado para fazer a pesquisa para o documentário Geada Negra (2008), do jornalista Adriano Justino.

A surpresa só fez aumentar à medida em que batia na porta dos arquivos. Não encontrou quase nada disponível no Museu da Imagem e do Som (MIS). Nem mesmo o Centro Audiovisual da Universidade Estadual de Maringá tinha material organizado. “Foi como procurar agulha num palheiro”, compara Azola. A dificuldade em garimpar dados sobre um assunto coberto inclusive pela imprensa internacional não impediu o sucesso do projeto. Nem intimidou o historiador a formular uma hipótese.

“A Geada Negra desmontou o discurso da propaganda – a de uma Curitiba europeia e moderna. Daí, talvez, o esquecimento”, arrisca. Não está sozinho. O arquiteto e urbanista Lóris Guesse – uma das cabeças da Companhia de Habitação, a Cohab-CT, a partir da década de 1970 – lembra dos esforços para que a capital não se favelizasse; ou que se repetissem os erros anteriores, como o do banimento dos migrantes para Cohabs mal servidas de tudo. “A gente entendeu que a integração dos nortistas tinha de ser rápida. Queríamos que as pessoas dissessem que moravam em Curitiba e não num conjunto habitacional”. Na ocasião, a cidade tinha 35 ocupações irregulares – 4 mil famílias favelizadas, o equivalente a 20 mil pessoas, um número que só fez aumentar .

Progresso?

“A Geada Negra foi o Chanel 5”, brinca o sociólogo Dimas Floriani, da UFPR e da Casla – Casa Latino-Americana. Ele se refere ao mais curioso dos fatos – os termômetros abaixo de zero no dia 18 de julho de 1975 serviram para “perfumar” um fato consumado. O Paraná das quase românticas lavouras de café – habitadas por colonos e meeiros que viviam em comunidade, regidos pelos sinos da capela – passou a ser visto como arcaico pelos setores algo progressistas do empresariado, da política e da imprensa.

A cada vez que caíam, sem piedade, as geadas serviam para legitimar os discursos que relacionavam a monocultura cafeeira ao atraso. O futuro – lembra – estava nas lavouras americanas, mecanizadas e habitadas por 3% da população; escoradas na dobradinha insumos químicos e mecanização, o que contrastava com a imagem de famílias inteiras derriçando grãos.

Em pesquisa feita na década de 1980, junto a 35 donos de mais de 200 hectares, Dimas percebeu que eles não só admitiam, à época da geada, a mudança no ramo de negócio como tinham investido em terras noutros estados. Virariam reis do gado. O que fica no ar é o que pensavam sobre o destino dos 4,5 milhões de paranaenses que viviam na zona rural, à mercê do que nem um nem dois chamam de uma das maiores marchas da história recente.

Tomados de ímpeto nacionalista, podiam prever que se mudariam para a cidade, teriam emprego nas indústrias e que seus filhos fariam cursos técnicos. Em Curitiba, aliás, havia desde 1973 a CIC, endereço de inúmeros nortistas. Teria escapado da conta a falta de moradia e a exposição à violência – que se tornaria endêmica.

Para Dimas, só há uma palavra para explicar: improvisação. “No Brasil a gente faz primeiro e depois vê o que acontece. O capitalismo lida bem com isso. No mais, essa mudança estava sendo gestada no plano internacional”, diz. Desse ponto de vista, o fim do ciclo cafeeiro deixou regiões à míngua, mas também gerou dinheiro. “É híbrido e complexo. Na França o governo paga para as pessoas ficarem na agricultura. Aqui não foi assim”, completa.

Lá se vão 40 anos. Novos desafios se impõem. Um deles – diz o urbanista Lóris Guesse – é o destino das pequenas cidades, uma discussão que aquece o planeta. O Paraná as tem para lá de 300. Pensar nelas, eis a pedida.

Geada negra o filme

Cineasta fala do significado do evento que dividiu a história do Paraná.

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