Silêncio ensurdecedor
Testemunhas de assassinatos se recusam a passar informações à polícia por medo. Lei do silêncio impera em comunidades mais pobres de Curitiba
Descaso
Conheça alguns casos em que a polícia não ouviu testemunhas suficientes para solucioná-los:
Fev 2010: Um jovem de 26 anos não identificado foi baleado e encaminhado pelo Siate ao Hospital Evangélico, mas morreu dois dias depois, em 10 de fevereiro de 2012. Por uma falha de procedimento, a Delegacia de Homicídios não foi avisada e só entrou no caso em março. Os investigadores foram ao local do crime, no Parolin, mas ninguém mais se lembrava do ocorrido. O caso foi arquivado.
Mai 2010: E. e D. foram mortos em 21 de maio de 2010, a tiros, com um grupo de pessoas como testemunha. A mãe de E. e a cunhada de D. compareceram à delegacia para registrar o boletim de ocorrência, mas nenhuma foi intimada a depor, tampouco as testemunhas oculares. O inquérito só foi aberto em março de 2011. No local do crime foram encontrados projéteis, que não foram periciados. As investigações continuam.
Jan 2011: C.H.C foi morto em frente da casa onde morava, no Campo Comprido. Os pais estavam no local, mas só a mãe foi depor. Em conversas informais com moradores da região, investigadores identificaram o nome completo do suspeito. Polícia não conseguiu localizá-lo, tampouco ouviu outra testemunha. O inquérito ainda tramita.
Fev 2013: Um homem de 39 anos que fazia bicos na Ceasa foi morto com quatro tiros em 15 de fevereiro deste ano. O irmão depôs na Delegacia de Homicídios e não revelou nada pertinente ao caso. Quatro meses depois, a delegacia já pediu o arquivamento do inquérito. Os argumentos foram aceitos pelo Ministério Público e pela Justiça.
3,8 testemunhas foram ouvidas, em média, nos inquéritos dos mil homicídios analisados pela Gazeta do Povo.
7 depoimentos foram tomados nos casos em que a polícia conseguiu identificar a autoria do crime e indiciar alguém.
355 inquéritos ouviram apenas uma ou duas testemunhas. Desses, em apenas 22 a polícia fez o indiciamento de algum suspeito.
Base de dados
Acesse informações sobre os inquéritos de mil homicídios ocorridos entre 2010 e 2013 e que foram analisados pela Gazeta do Povo www.gazetadopovo.com.br/crimesemcastigo
Os jurados que compareceram ao Tribunal do Júri em 5 de julho deste ano não precisaram decidir se o réu era ou não culpado de um assassinato. O próprio promotor de Justiça disse que, naquele caso, não era possível pedir a condenação do suspeito. Segundo o promotor Marcelo Balzer Correia, que há dez anos atua na 1.ª Vara do Júri de Curitiba, não havia provas. Tudo o que o inquérito tinha contra o indiciado era um único depoimento. A testemunha, porém, admitia que sabia pouco sobre o crime. A juíza Mychelle Pacheco Cintra concordou com Correia e o caso foi encerrado, somando-se aos milhares de homicídios em Curitiba que seguem sem solução.
São comuns os casos em que a polícia ouve poucas testemunhas para elucidar um homicídio. Levantamento da Gazeta do Povo feito com base em inquéritos de mil assassinatos revela que em 595 casos foram colhidos depoimentos de três testemunhas ou menos. Existem até mesmo inquéritos em que ninguém foi interrogado (leia mais). A pesquisa também mostrou que há fatores que levam a investigação a ser mais bem realizada, como a repercussão do crime.
De acordo com Correia, além de o número de depoimentos ser baixo, há uma distinção a ser feita. "A maior parte das pessoas ouvidas não são testemunhas de fato do crime. Não estavam no local nem viram o que aconteceu. São o que chamamos de informantes", diz. Os informantes são pessoas da família ou amigos que comentam o caráter da vítima: se tinha envolvimento com drogas, bebia ou tinha alguma rixa.
"Ouvem o pai e a mãe para saber se alguém brigou com a vítima, a esposa, o vizinho e encerram por aí. Feito isso, não se constata indício de autoria. E mandam para o Ministério Público na maior cara de pau. Testemunha é a pessoa que esteve presente ou que presenciou de alguma maneira os fatos relacionados ao crime", afirma José Vicente da Silva Filho, consultor de segurança pública e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo.
Não faltam exemplos do gênero. No inquérito da morte de J.G.M., assassinado em outubro de 2010, por exemplo, a única informante ouvida foi sua mãe, que disse não saber nada. Outra investigação semelhante é a de N.R.S.. Vendedor de carros usados, ele foi morto em novembro de 2010. A única testemunha foi um irmão dele que, no depoimento, falou que convivia pouco com a vítima.
Diferenças
O levantamento também permite ver que há uma relação clara entre a quantidade de testemunhas ouvidas e o resultado da investigação. Os inquéritos analisados que já contavam com o indiciamento de um suspeito tinham quase o dobro de depoimentos: eram sete testemunhas por caso, em média.
A reportagem também leu os inquéritos que resultaram em condenações judiciais dos réus. E o resultado é semelhante. Dos crimes de homicídio cometidos em Curitiba em 2003, a Justiça condenou alguém à cadeia em 25 casos. Desses, a Gazeta teve acesso a 12 inquéritos. A média de testemunhas ouvidas antes que esses casos chegassem ao Judiciário é de 7,2 testemunhas: ou seja, quase o dobro da média geral dos inquéritos policiais.
"O homicídio é um dos crimes mais fáceis de serem elucidados porque normalmente envolve conflitos de pessoas que se conhecem. Tem testemunhas, seja do fato em si ou do problema que havia. São raros os casos de homicídio onde não existem testemunhas", diz Arthur Trindade Maranhão, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília.
Número de oitivas não é sinônimo de boa investigação, diz delegado
O número de testemunhas ouvidas em cada crime de homicídio em Curitiba evoluiu pouco nos últimos anos. Há apenas uma pequena melhora em relação a 2010, quando a média era de 3,5 por morte. Hoje, segundo o levantamento feito pela reportagem, o índice é de 4,1 depoimentos a cada morte violenta.
Embora a média permaneça estável nos últimos anos, Rubens Recalcatti, delegado titular da Homicídios de Curitiba até ontem, diz que não considera isso um problema. De acordo com ele, é possível resolver um crime até mesmo com dois depoimentos. O delegado considerou boa a média de 3,8 pessoas ouvidas por crime.
Segundo Recalcatti, o fato de os inquéritos em que há indiciamento do suspeito terem média mais alta, de sete testemunhas, não indica necessariamente uma correlação entre o número de depoimentos e a qualidade da investigação. De acordo com ele, o que acontece é que em casos de indiciamento normalmente são ouvidas mais pessoas para confirmar a autoria.
Recalcatti também diz que atualmente não existem mais casos sem depoimentos. A reportagem encontrou três homicídios ocorridos em 2013 em que não havia sido ouvida nenhuma testemunha nos 30 primeiros dias de investigação. Dois casos eram de corpos não identificados e o terceiro de uma vítima identificada.
Dificuldade
O delegado-geral da Polícia Civil, Riad Farhat, afirma que no caso de homicídios é especialmente difícil conseguir testemunhas "porque ninguém comete homicídio na frente dos outros. Normalmente, na cena do homicídio está o homicida e a vítima. Aí já começa a dificuldade da polícia".
Sobre a lei do silêncio, Farhat diz que o problema existe sempre que o homicídio acontece entre pessoas envolvidas no mundo do crime. "Ninguém abre a boca para falar nada, porque as pessoas sabem que qualquer declaração numa delegacia de polícia ou na imprensa, o troco vai vir e rápido", afirma.
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