O “sonho haitiano” no Brasil engloba muito mais do que deixar o país de origem e tentar conseguir emprego. Vai além da questão econômica. Passa por rupturas afetivas com a terra natal e a própria família. É o que viveu o haitiano Reynald Stanis, de 40 anos. Migrou em busca de uma vida melhor, deixando para trás sua esposa Marie Ange Exantus, grávida do quarto filho. “Não o conheço ainda”, conta emocionado em português quase claro, aprendido em um ano e dez meses no Brasil.
Histórias como a dele reforçam a condição de vulnerabilidade em que os imigrantes chegam ao país e escancaram a necessidade de uma estrutura governamental para recepcioná-los. Afinal, receber os estrangeiros apenas não basta. Para quem vive o dia a dia da migração, é preciso que o poder público mantenha um sistema de garantia de direitos que evite violações – como xenofobia, racismo e trabalho escravo – e que assegure ao estrangeiro a chance de reconstruir sua vida em segurança e com dignidade. É neste ponto que o país falha.
“Antes de convidar o estrangeiro para a sua casa, o governo deveria ter preparado alguma coisa. Não temos que ficar de braços cruzados”, critica o coordenador da Pastoral do Migrante em Curitiba, padre Agler Cherizier.
Brasil demorou para criar estrutura de apoio a haitianos
Apesar de receber migrantes do Haiti desde o início da década, só agora o Brasil começa a esboçar uma estrutura de acolhimento aos haitianos. Mesmo com o atraso do país, o Paraná ficou um passo à frente, com a criação do conselho de migração.
+ VÍDEOSDas 27 unidades da federação, apenas o Paraná já constituiu um conselho estadual (leia mais nesta página) que pensa e debate mensalmente as questões relacionadas aos migrantes e refugiados no estado. “O estado poderia ter se organizado melhor? Não só o Paraná, mas o próprio Estado brasileiro”, avalia Fátima Ikiko Yokohama, presidente do Comitê Estadual dos Migrantes e Refugiados, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania.
Acolhimento provisório
Apesar de o Paraná ter se desenvolvido ao longo do século passado com a força de imigrantes europeus, japoneses e, mais recentemente, árabes e chineses, a estrutura paranaense para receber estrangeiros ainda engatinha. Só agora, cinco anos depois da chegada dos primeiros haitianos, o estado abriu uma casa oficial de acolhimento, provisoriamente instalada junto à Vila da Cidadania, em Piraquara, e prepara uma forma de receber os imigrantes.
Para a presidente da Associação Para Solidariedade dos Haitianos no Brasil, Laurette Denardin, esta demora escancara o “atraso” do poder público em acolher os imigrantes. “Até agora, o Brasil não tem uma política migratória para estrangeiros. O visto é chamado de humanitário, mas não tem uma estrutura humanitária para receber”, diz.
Sem a obrigação de possuir estruturas próprias para receber os estrangeiros, Curitiba não dispõe de qualquer equipamento nesse sentido. Os casos de maior vulnerabilidade são atendidos em unidades para pessoas em situação de rua. Se não fossem entidades como a Casa Latino-Americana , a Caritas, a Pastoral do Migrante e o Recanto Franciscano, os haitianos estariam praticamente à deriva na capital.
O Paraná e os imigrantes
A partir de sua emancipação em 1853, o Paraná se acostumou a receber migrantes de forma mais intensa. O estado não só acolheu os estrangeiros que chegavam para fincar raízes como se desenvolveu com o trabalho dos estrangeiros. Na década de 1870, começou o fluxo ainda maior de franceses, italianos, suíços, ingleses, alemães e poloneses, entre outras nacionalidades. Os primeiros grupos se alocaram em terrenos nas redondezas de Curitiba. A adaptação havia sido tão boa que novas iniciativas colonizadoras chegaram ao Litoral e aos Campos Gerais. Italianos ficaram basicamente na região litorânea na época. Entre 1890 e 1900, foi a vez dos árabes e japoneses desembarcarem no estado.
Paraná é o único estado a ter um conselho de direitos para migrantes
O Paraná é o único estado brasileiro que formou um conselho estadual específico para pensar soluções e melhorias das políticas públicas locais de atendimento aos migrantes. A proposta, implementada em abril deste ano pela Lei 18.465/15, é um avanço, mas ainda carece de fundamento prático, já que a chegada em larga escala de migrantes e refugiados é um fenômeno relativamente novo. O nome do órgão é Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas (Cerma).
Serão 18 integrantes no conselho, nove da sociedade civil e nove representantes do Executivo estadual. Todos serão indicados em breve para sacramentar a primeira reunião da entidade.
Para Fátima Ikiko Yokohama, presidente do Comitê Estadual dos Migrantes da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, o governo foi instigado pela sociedade civil a partir de 2012, quando os haitianos começaram a chegar. Naquele ano, segundo ela, foi criado o Comitê e, após a primeira Conferência Nacional sobre Migrantes e Refugiados do Brasil, em São Paulo, no ano passado, o estado decidiu criar o conselho. São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul já estudam a criação de um mecanismo semelhante ao paranaense.
“Nós precisávamos em um primeiro momento de formação dos agentes público, pessoas das universidades que nos procuraram e representantes das secretarias estaduais. Depois, uma das propostas era pensar na criação e elaboração de plano estadual de políticas públicas”, afirma Fátima.
O Paraná acabou terminando o plano, criou a central de acolhimento (que funciona na Vila da Cidadania, em Piraquara) e, em seguida, constituindo o conselho. Hoje, cada secretaria estadual tem uma responsabilidade direcionada aos estrangeiros. O principal objetivo agora é fortalecer uma rede de proteção, que envolve estado, municípios e representantes da sociedade civil.
Brasil ainda não ratificou convenção da ONU de 1990
O Brasil ainda não ratificou a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre a Proteção de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias. Apesar de o país ser signatário, a carta não tem validade prática. A convenção foi adotada pela ONU em 1990 e chegou à Câmara dez anos depois. A Convenção é um ato internacional fundamental para garantir direitos iguais a todos da mesma forma em vários países. Para isso, é preciso a ratificação do Congresso para colocá-la em prática. Apenas em junho o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), criou uma comissão para debater o tema.
“Os países, em geral, não querem garantir direitos aos migrantes, até por medo de, ao garantir direitos, provocar que os migrantes vejam com bons olhos a alternativa de buscar uma vida melhor no país que assina a convenção”, avalia a procuradora do Ministério Público do Trabalho Cristiane Sbalqueiro Lopes. Segundo ela, um dos maiores benefícios de ratificar a convenção é evitar o retrocesso social, como perda de direitos adquiridos.
O país também não tem uma lei de migração. A legislação vigente é o Estatuto do Estrangeiro, considerado ultrapassado pelos especialistas. Na última semana, a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou o texto do projeto que cria a Lei da Migração. O texto seguiu para análise da Câmara.
“O Brasil é bom pra mim”, diz haitiano
O haitiano Reynald Stanis, de 40 anos, não compartilha da mesma vontade de deixar o Brasil como muitos de seus compatriotas. Longe disso. Ele é um dos milhares de migrantes do Haiti que conquistaram relativa estabilidade e pretendem ficar. Afinal, não passou por toda trajetória espinhosa à toa. Antes de chegar, passou pela República Dominicana, Colômbia e Equador (veja as rotas no gráfico nesta página). Mesmo com a falta de estrutura e todos os problemas que encontrou no Brasil, ele se considera um vencedor.
“No momento, o Brasil é melhor que o Haiti. Emprego é difícil, é verdade. Tem gente que vem e é melhor. Não sei se depois tem problema. Se tenho dinheiro, eu quero trazer meus irmãos para cá. O Brasil é bom pra mim”, diz Stanis em entrevista na Pastoral do Migrante, em Curitiba.
Em Curitiba desde setembro de 2013, deixou a mulher grávida no Haiti. Conseguiu dois empregos, um como segurança de estacionamento e outro na equipe de limpeza de um shopping. Por sorte, os dois serviços ficam um ao lado do outro, no Ecoville. Termina um, atravessa a rua e chega à próxima jornada de trabalho. No Haiti, trabalhava na agricultura e tinha experiência na construção civil.
Há pouco mais de três meses, conseguiu trazer a esposa Marie Ange Exantus para Curitiba por “módicos” R$ 8 mil, com ajuda de um coiote. Mas os filhos seguem distantes. Além do bebê, hoje com 1 ano, Stanis deixou no Haiti também outros três filhos, com 15, 11 e 7 anos.
O crescimento deles, em Gonaive (a 150 km da capital Porto Príncipe), a cidade natal da sua família, é acompanhado pelos avós e monitorado à distância pela internet. “Muita saudade”, diz ao lembrar dos filhos.
Na casa onde mora no bairro Santa Felicidade, residem ele, a mulher, um primo dela e mais dois haitianos. Todos dividem o aluguel de R$ 930. O problema, no entanto, é que a dificuldade em encontrar emprego faz com que Stanis assuma praticamente sozinho os custos da moradia.
O primo da esposa dele há quatro meses que não trabalha. Os outros também não conseguem emprego. “Procura, faz entrevista e ninguém chama”, explica. Por isso, ressalta, sua permanência no Brasil depende prioritariamente da oferta de emprego. Ele tem dois, mas se não tivesse... “Se não tem serviço, eu vou para o país que tem. Graças a Deus, o Brasil ajuda muito o haitiano.”
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