No fim de abril, em entrevista à Folha de S.Paulo, o secretário nacional de Políticas Penais do governo Lula, André Garcia, criticou a aprovação da PEC das Drogas (PEC 45/2023) pelo Senado, com o argumento de que prender quem porta pequenas quantidades de drogas fortalece as facções criminosas.
"O mais grave em função do cenário que temos hoje, como é uma prisão sem critério que coloca usuário e traficante no mesmo pacote, é oferecer mão de obra para as organizações criminosas que atuam dentro dos presídios", afirmou.
O argumento, reproduzido nas últimas semanas por diversos analistas e meios de comunicação com viés de esquerda, é uma falácia, de acordo com especialistas em segurança pública. Para eles, a ideia de que a criminalização resulta em muitos encarceramentos de usuários e na criação de mão de obra para o tráfico de drogas é falsa.
O sociólogo e analista político Eduardo Matos de Alencar, autor do livro "De quem é o Comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil?" (Record, 2019), considera que "o mito do usuário encarcerado é meramente anedótico". "Não existe uma única pesquisa que aponte para um número significativo de usuários presos no sistema penitenciário", afirma.
O especialista em segurança pública Davidson Abreu, oficial da Polícia Militar de São Paulo e autor do livro "Tolerância Zero" (Avis Rara, 2021), recorda que a PEC das Drogas nem sequer prevê pena de prisão ao usuário comum. "Só se impede a descriminalização. O porte e o uso de entorpecentes continuam sendo crimes, mas não se prevê pena de prisão, só penas alternativas, o que já é uma coisa muito branda. Porque, veja, um usuário de crack, por exemplo, nem consegue cumprir uma pena alternativa, porque não consegue, na maioria das vezes, executar um trabalho comunitário, muito menos pagar uma multa. Na maioria das vezes, não tem residência fixa. Para esse tipo de usuário de drogas, a pena é inócua, a não ser que seja estipulada a internação compulsória, o que ainda é muito difícil", observa.
Davidson explica o procedimento padrão: "Se a pessoa for pega utilizando drogas hoje, uma viatura a leva para assinar um termo circunstanciado. Se ela sai da delegacia e é pega usando drogas novamente, mesmo assim ela não vai ser condenada à prisão. Mesmo a reincidência não vai condenar a prisão. As penas continuarão sendo penas alternativas, ou com pagamento de multa, ou até mesmo só com admoestação verbal. Essa história de que as cadeias vão lotar, que o mais pobre vai ser o prejudicado e tudo mais, é mais uma mentira da esquerda, porque quer a liberação das drogas e trabalha com a desinformação."
À Gazeta do Povo, o senador Efraim Morais (União-PB), relator da PEC das Drogas, também destaca que a lei prevê casos de prisão apenas para o traficante, e aplica ao usuários penas alternativas, em nenhum caso com encarceramento. Sobre a possibilidade de erro na aplicação da lei, ele recorda que a prisão de um traficante costuma passar por diversos crivos.
"Se existe equívoco na aplicação da lei, importante citar que, para alguém ser preso como traficante, passa pela avaliação da autoridade policial, do parecer do Ministério Público e pela decisão de um juiz, o que reduz bastante a hipótese de se prender um usuário como se traficante fosse", afirma o senador.
A Lei de Drogas sancionada pelo presidente Lula em 2006, durante seu primeiro mandato, prevê penas somente de advertência sobre os efeitos das substâncias, prestação de serviços à comunidade e participação em programas ou cursos educativos para quem for flagrado pela polícia portando drogas para consumo próprio. O prazo para a pena é de cinco meses, e sobe para dez em caso de reincidência.
Eximir usuário de culpa revela ignorância sobre funcionamento do tráfico
Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), aponta outro problema no argumento de Garcia: a confissão da falência do Estado no controle sobre o sistema prisional e no combate às organizações criminosas que atuam nos presídios.
Ele também critica o "discurso romantizado" sobre o tráfico de drogas, "distante da realidade de quem combate essa atividade", ao tentar desvincular completamente o tráfico do consumo. "Hoje, como a legislação isenta de pena quem porta drogas para consumo próprio, a estratégia dos traficantes passou a ser a de deixar os entorpecentes armazenados em algum lugar próximo de onde atuam e apenas andar com as pequenas porções para venda, tornando extremamente difícil o real combate ao seu comércio ilícito."
Para Rebelo, é preciso considerar que os usuários também têm sua parcela de culpa na expansão do tráfico. "É imprescindível ter em mente que a atividade do tráfico compõe um verdadeiro ecossistema ilícito, pois só existe o comércio porque há quem compra as drogas para consumir. Não é possível imaginar que o traficante é o criminoso malvado e o usuário não tem nada a ver com isso. Afinal, é ele que alimenta essa atividade."
Matos de Alencar critica a tendência da esquerda de querer inocentar o traficante que porta pequena quantidade de drogas. "A esquerda usa o fato de que um percentual grande de presos pela Lei de Drogas estava portando drogas em pequena quantidade. O problema é que isso só evidencia o meio mais à mão para a polícia prender os traficantes que trabalham no varejo, que é quando eles estão nos pontos de venda de droga. Na maior parte do país, os traficantes distribuem drogas em pequena quantidade para outros traficantes, que ficam circulando em uma região delimitada, à cata de compradores. Quando a PM chega, é nessa ponta que consegue dar o flagrante", explica.
O especialista acrescenta que essas pessoas não viram mão de obra de organização criminosa dentro de presídio. "Ele já é mão de obra fora, por isso vai preso. Pequeno traficante que não tem ligação com organizações criminosas é como cometa, passa uma vez na década."
A solução, para ele, é o endurecimento das penas e o aprimoramento do sistema penitenciário, e não a descriminalização. "Em vez de mudar a Lei de Drogas, o governo deveria estar preocupado com o endurecimento para as penas de quem estivesse faccionalizado. Também em investir mais no sistema penitenciário, para termos presídios com regalias para bom comportamento e não faccionalização, e regimes de tranca dura para quem quiser compor o quadro das organizações criminosas."
PEC das Drogas é reação necessária a ativismo judicial, afirmam especialistas
O relaxamento da punição ao chamado "pequeno traficante", segundo Matos de Alencar, criaria um sistema de proteção contra o tráfico de varejo que inviabilizaria a ação da polícia, que tem como base de seu trabalho de combate às drogas a prisão em flagrante. "Aliás, essa já parece ser a intenção de parte do Poder Judiciário, com decisões recentes que impedem até mesmo a entrada em domicílio de gente armada em fuga, sem um mandado de prisão. E aí teremos a farra do varejo de drogas", afirma.
Para os especialistas, a PEC das Drogas se tornou necessária justamente diante do ímpeto ativista do Poder Judiciário, que dá sinais de leniência com o tráfico e tem demonstrado seu desejo de descriminalizar as drogas.
"Vemos uma tendência à defesa da liberação do uso de entorpecente, inclusive na dificuldade que estão impondo para a polícia prender traficantes e nas decisões do STJ [Superior Tribunal de Justiça], em habeas corpus, que cada vez mais dificultam a prisão de traficantes", afirma Davidson Abreu. "Apesar de ser um absurdo chegarmos a essa necessidade, é preciso colocar a questão da criminalização na Constituição para que não haja uma descriminalização das drogas feita pelo Judiciário", acrescenta.
Para ele, uma das vantagens geralmente ignoradas da criminalização do usuário de drogas é estabelecer um crivo para evitar que pessoas envolvidas com o tráfico em qualquer medida entrem nas polícias. "A penalização do uso, a criminalização do uso de entorpecente, é muito boa para impedir que pessoas que cometem esse crime façam concursos para a polícia e outros concursos."
Fabricio Rebelo destaca a importância de deixar claro, por meio da PEC, que a descriminalização das drogas é inconstitucional. Ainda assim, ele tem dúvidas de que a PEC será suficiente para imunizar a Constituição contra o ativismo do STF. "A proposta no Congresso se volta a tentar coibir essa brecha que o sistema atual contém, ainda que seja muito pouco provável que seu eventual avanço seja permitido pelo STF, que caminha em direção oposta à criminalização."
Atualmente, o Supremo julga o Recurso Extraordinário 635.659, em que os ministros discutem um critério objetivo para diferenciar usuários e traficantes de maconha. A aprovação da PEC foi vista como uma tentativa do Congresso de neutralizar o efeito desse julgamento, mas parte da oposição ainda teme que, mesmo que a Câmara confirme a decisão do Senado, o STF improvise um entendimento para declarar a PEC inconstitucional.
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