Histórias sobre mendigos são o que há. Repare. De um morador de rua se diz que "era cheio da gaita", até que, revoltado com o pai, vestiu-se em trapos qual São Francisco e saiu por aí, provando o fel da miséria. De outro, que era tão crânio em aritmética que um dia lhe faltou o juízo. Houve o que foi abandonado pela noiva no altar, restando-lhe vagar, coração partido, entregue à cachaça e ao consolo dos cobertores curtos da Fundação de Ação Social. Tem também aquele que se transformou no terrível "homem do saco": corcunda, camisa rota abotoada até o pescoço, perpetua um dos mais sórdidos obscurantismos medievais o que associa pobreza, demência e maldade.
As estatísticas sobre os moradores de rua destruíram alguns desses clássicos da mendicância. Há, de fato, muitos que assim o são por terem miolo mole. Existem, sim, pencas de desiludidos. E até diplomados com curso superior, precisamente 190 brasileiros, de acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social. Mas, matematicamente, mendigos são a raspa de tacho de um país desigual. E fim de papo.
Eles estão em um lugar onde ninguém gostaria de pisar, nem por brincadeira. Suspeito que é por medo de ter sina igual que fantasiamos tanto sobre a turma da marquise. Imaginamos o que teria lhes acontecido para não esquecer o que pode nos acontecer, por capricho do destino, esse osso duro de roer.
Basta conversar com um desses habitantes do sereno para saber que são muito mais trágicos que os miseráveis de Charles Dickens. Mais exóticos que o Álvaro Picadura do romance Pilatos, de Carlos Heitor Cony. Mais solitários que os quietos animais da esquina de João Gilberto Noll. Leonildo José Monteiro Filho, 36 anos, líder local do Movimento da População de Rua, bem poderia ser um desses personagens. Ou todos eles.
Leonildo foi criado em Nortelândia, Mato Grosso. Filho adotivo de um policial militar, suportou todas aquelas quimeras das quais só sabem os conselheiros tutelares. "Para gente como eu só restava o trecho", diz o negro retinto, asseado numa alvíssima camisa de fio. Nem sempre foi assim. Foragido dos pelourinhos domésticos, tornou-se trecheiro nome que se dá aos viajantes sem rumo, à mercê das carrocerias de caminhão. É a primeira etapa de um maltrapilho. A segunda é a de "pardal", como se chama o morador de rua em rua, sujeito à fúria dos playboys, à sedução dos traficantes e aos cassetetes da polícia.
Difícil contabilizar quantas vidas viveu Leonildo entre uma fase e outra. Ele se fez vendedor, garimpeiro, faxineiro do Graciosa Country Club... Teve endereços o bastante para três encarnações de uma casa abandonada na elegante Avenida João Gualberto à 12.ª DP. Até o dia em que pediu a palavra num encontro do povo da rua. Ops! Ele um expert em terrenos baldios, voraz leitor de gibis ensebados do Zé Carioca mal se lembrava, mas tinha o que dizer.
Tudo mudou. Hoje é inquilino de uma casinha de fundos no Prado Velho, dividida com Joana, a quem conheceu num forró perto da Catedral. "Meu anjo..." Os outros anjos foram o Ubiratan da Silva, o Bira da Câmara; e Sandra Mancini, do Ministério Público. Graças a esses e outros, em 2010 deixou de ser um dos 2.776 moradores de rua de Curitiba.
Toda semana ele se reúne com alguns dos seus chapas numa saleta da Rua Tibagi e lhes devolve a voz perdida. "Tem um que é arquiteto. E uma japonesa de Maringá", comenta. Só não está lá quando viaja em prol do movimento. Acha divertido. De repente, o sujeito que procurava um cantinho da Rua XV para se aninhar circula em aeroportos, indo a encontros de direitos humanos aqui e ali.
Na minha imaginação, quando o avião decola, Leonildo procura lá em baixo, pela janelinha, as praças Tiradentes e Rui Barbosa. Deve passar um filminho na sua cabeça, sobre os tempos em que esmolava comida pelo Centro. Mas logo a cidade é coberta pelas nuvens, como num sonho. Uma aeromoça lhe oferece barrinha de cereal. Serão de verdade?
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