Hoje faz 90 anos da primeira transmissão do rádio no Brasil, da qual pouco se sabe. Pudera. As misteriosas ondas foram usadas para reproduzir um discurso do presidente Epitácio Pessoa sobre o Centenário da Independência e blablablá. Quem haveria de saber... Pra não dizer que não falei das flores, tocou O Guarani, de Carlos Gomes, daí, suponho, ter virado a trilha sonora oficial da Hora do Brasil (rebatizada em 1945 como A Voz do Brasil). Por motivos que não dizem respeito a Carlos Gomes, claro, virou a hora sagrada em que todo cidadão desliga o rádio. É o que dizem.
De resto, os aparelhos trabalham pesado nesta imensa nação, consumindo baterias, pilhas e a energia de Itaipu. Toda e qualquer estatística aponta o mesmo resultado: 100% da população ouve rádio. A preferência supera a televisão até mesmo na hora do jogo da Seleção Canarinho. Apesar desse imenso ibope, que ironia, o brasileiríssimo mundo radiofônico carece de estudos a contento, repetindo a sina de outras paixões nacionais o carnaval e o futebol. A propósito, impossível esquecer a peleja do radialista Euclydes Cardoso, o Kid, morto em 20 de julho último, para erguer um Museu do Rádio em Curitiba, cidade pioneira nessas lides. Pois é.
Nada que não tenha remédio. De minha parte, sugiro que façamos um memorial ao rádio, por conta e risco, entupindo as caixas postais, redes sociais e o que mais com nossas lembranças sobre esse companheiro sempre ao pé do ouvido. Haveremos de nos superar tanto na emoção assim quanto na obsessão. Tem quem não passe sem rádio, para o que os avanços dos fones de ouvido muito contribuíram. Melhor não desdenhar essa madrugada, um radialista lerá uma carta sentimental, que verterá lágrimas numa moçoila em fogos, qual nos anos loucos, nos anos dourados, nos anos rebeldes, como se nada tivesse mudado. Tudo passa, companheiro, menos o rádio.
De minha parte, comecei meus recuerdos sentimentais logo ao saber da efeméride dos 90 anos. Surpreendi-me com o resultado. O rádio e eu somos íntimos qual o quê. Na minha rotina, o aparelho só enfrenta concorrência dos óculos. Ao pular da cama preciso deles para ligar as traquitanas paraguaias que deixei dispostas em três lugares da casa em cima da geladeira e da pia do banheiro, na estante da sala , não raro incomodando os vizinhos, do que aqui me penitencio.
Do ponto de vista da formação intelectual, do mesmo modo, o rádio deixou mais marcas que o manual de Português do Paschoal Cegalla. Explico. Um dos autores que melhor radiografa o Brasil é Antonio Candido em especial quando fala da nossa afeição à oralidade. Somos falantes profissionais. Aprendemos de orelhada. O homem com o radinho de pilha na mão seria a imagem que melhor nos traduz, sugere ele. O que ouvimos, tão coloquial, imediatamente reproduzimos, qual papagaios hiperativos: "Viu a última?" repetimos com quilowatts de potência. E tome polca dá para ouvir rádio e partilhar dos saberes do mestre Candido. É ótimo.
Não só os dele. Woody Allen aparece na minha lista como maior sabichão em dials. Seu filme A era do rádio (1987) merece ser visto incontáveis vezes, e as frases decoradas, para exibir à namorada. Amo a cena em que Denise Dumont interpreta Carmen Miranda, ídolo das emissoras ianques a partir de 1939. Não canso de ver a sequência em que uma família judia, do Brooklyn, dubla a nossa Carmen cantando South American Way, com trejeitos e turbante na cabeça. Delícia.
Allen mostra que ouvindo rádio ficamos mais, digamos, antenados. É um legítimo "meio quente", como ensinou Marshall McLuhan, numa vã tentativa de explicar tamanha coceira nas cadeiras e nas mentes provocada pelo meio mais popular do século 20. Dá até saudade de tempos idos, confesso, pois, a contar do que dizem os antigos, "já não existem programas de auditório. E as macacas?"
De fato. Mesmo sem ter nascido na época da Rádio Nacional, a gente fecha os olhos e imagina a turma da Emilinha Borba achincalhando a da Marlene. Se estivesse lá, ouviria Linda Batista cantando Vingança, de Lupicínio Rodrigues, já pensou? Rádio parece máquina do tempo. Pensando bem, acho que é.