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Yasmin Breckenfeld é a responsável pela implantação do projeto “Vaga Viva” | Antônio More/Gazeta do Povo
Yasmin Breckenfeld é a responsável pela implantação do projeto “Vaga Viva”| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

Bicicleta não é “coisa de menino” ou “de menina” entre as crianças. Há locais em que essa igualdade persiste na vida adulta, como na Alemanha e na Holanda. Em outros, muita gente acha que pedalar é tarefa exclusiva para homens, caso da Síria e da Faixa de Gaza. No Brasil, esse tipo de opinião não é tão popular. Ainda assim, pesquisas indicam que as mulheres representam apenas 7% dos ciclistas. O dado preocupa. Indica que metade da população está praticamente apartada de um modal de transporte que é a aposta de muitas grandes cidades para melhorar o trânsito e diminuir a poluição.

Luz no fim do túnel: mulheres enfrentam adversidades e saem pedalar

“Eu ia sozinha para o colégio, quando era pequena, e três vezes aconteceu de um homem se despir na minha frente. A primeira foi na 5.ª série. Só fui perceber esses dias que isso me gerou um medo de andar na rua. Qualquer homem me dá medo. E com a bicicleta isso simplesmente desaparece.” O relato é da designer Yasmin Reck, que virou cicloativista tão logo ganhou sua primeira bicicleta, na vida adulta, em 2012. Ela é parte da minoria de mulheres que utiliza a bicicleta como meio de transporte, nas ruas de Curitiba.

Os relatos se repetem em países onde o ciclismo é terra de homens. “Quando a crise começou. era difícil chegar à nossa casa por causa da destruição. Lembrei da minha infância no Líbano e como eu usava a bicicleta para chegar facilmente aos lugares, então decidi ser a primeira mulher de bike da Síria”, conta Hanan Shibib. Ela é a “primeira avó” do pais a andar de bicicleta, segundo informou à Gazeta do Povo o “Yalla Lets bike”, grupo que visa “quebrar estereótipos e barreiras” na sociedade síria.

A “liberdade” é uma constante nos relatos. Conta tanto a sensação - vento no rosto, andar em velocidade - quanto a praticidade, poder se locomover de um pouco a outro com maior rapidez e independência. É história que se repete: no final do século 19, movimentos nos Estados Unidos e na Europa saudavam a bicicleta como combustível para a “emancipação feminina”.

Em artigo sobre as mulheres e a bicicleta na virada para o século 20, os pesquisadores Victor de Melo e André Schetino, da UFRJ, explicam que ciclismo foi um dos responsáveis pelo fim do uso do espartilho. A prática ainda motivou muitas mulheres a vestirem calçies e bloomers (roupas curtas e calções presos nos tornozelos) e roupas esportivas, além de incorporarem os bolsos à vestimenta feminina.

Não é tão simples entender o que acontece neste meio tempo, em que elas largam o pedal. Em geral, as mulheres apontam os mesmos motivos que os homens, como impeditivo para não usar a bicicleta como meio de transporte. Segurança, falta de estrutura, rotas grandes. A resposta pode estar nas exceções.

Pesquisa realizada em 2015, em São Paulo, descobriu que a “falta de infraestrutura adequada” é uma das principais reclamações tanto das mulheres (19%) quanto para homens (25%) que usam a bicicleta como meio de transporte. Mas a existência de uma estrutura de própria para bicicletas faz mais diferença na vida delas. Pesquisa feita em Recife comparou o número de ciclistas em duas avenidas centrais da cidade. Na Forte, onde há uma ciclofaixa, as mulheres representaram 12,5% do total. Já na Beberibe, sem estrutura adequada, a taxa caiu para 5,8%. A contagem foi feito em uma quinta-feira, e os dados foram sistematizados pelo grupo de trabalho de gênero da Ciclocidade, ONG que atua com o tema.

A diferença é maior em áreas turísticas, onde há infraestrutura urbana mais complexa do que faixas para ciclismo. No Central Park, em Nova York, as mulheres são 44% dos ciclistas, relata John Pucher, professor de Planejamento Urbano da Rutgers University. No restante da cidade as mulheres ficam na média dos Estados Unidos, algo em torno de 23% a 26% dos ciclistas. Na Orla de Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, a participação de mulheres ficou em 27% e 30%, em duas contagens realizadas em 2014. É o dobro da média geral, alerta o Ciclocidade. E bem acima dos 7% da média nacional.

Além disso, homens e mulheres têm relação diferente com a segurança, o que influencia na forma como ambos ocupam o espaço público. É o que Laís Leão estudou em sua monografia de Arquitetura e Urbanismo, na UTFPR, em Curitiba. Ela entrevistou 550 pessoas e comparou a percepção de homens e mulheres. “Um homem vai olhar para uma rua bonita, arborizada, porém vazia, e dizer que é tranquilo andar ali. A mulher não. Já num lugar ‘feio’ mas com pedestres e comércio aberto ela se sente segura. Então a cidade acaba sendo excludente para elas, você limita as possibilidades de transporte”, explica.

Os medos também variam. Em geral, homens receiam assalto. Elas também, mas também se preocupam com assédio e violência sexual. Nos Estados Unidos, 13% das ciclistas têm medo de serem atacadas por estranhos, segundo dados da “Women’s Cycling Survey”. Pioneira do ciclismo feminino em Cairo, no Egito, Yasmine Mahmoud conta que um homem já tentou pular em sua bicicleta, a força. “Assédios sexuais verbais e comentários cínicos de quem passa por nos são grandes problemas”, conta ela, que integra o grupo Go Bike, em entrevista ao jornal paquistanês The Express Tribune.

“A gente ocupa o espaço público [ao andar de bicicleta], mas ao mesmo tempo fica mais exposta. Conheço umas cinco pessoas que já foram atacadas, com homens passando a mão nelas, e pelo menos três foram empurradas e se acidentaram mais gravemente”, conta a cicloativista Yasmin Reck, que entre 2014 e 2015 foi coordenadora geral da ONG Cicloiguaçu, em Curitiba.

Tipos de mobilidade

Não é só como as mulheres se movimentam dentro da cidade que explica a baixa adesão delas à bicicleta. É o que elas fazem. “Sabemos por diversos estudos que os padrões de deslocamento entre homens e mulheres são diferentes, considerando que elas realizam um maior número de trajetos e mais diversificados por conta dos papéis sociais que assumem”, explicam as representantes do grupo de gênero do Ciclocidade, em entrevista à Gazeta do Povo.

Em entrevista com dois mil adultos norte-americanos, a “Bikes Belong Coalition” constatou que a probabilidade das mulheres apontarem a “dificuldade de carregar crianças” como impeditivo à bicicleta é duas vezes, em comparação com as respostas dos homens.

7%

É a média de mulheres no total de ciclistas, no Brasil. O dado foi compilado pelo grupo de trabalho de gênero da ONG Ciclocidade, com base em 39 contagens de ciclistas realizadas em cinco cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Aracaju, Recife e Niterói) por organizações independentes, entre 2008 e 2015. Atualmente, o grupo trabalha em um diagnóstico detalhado sobre as mulheres ciclistas em São Paulo. Os dados foram coletados nas 32 subprefeituras paulistanas, entre 27 de junho e 14 de julho, e a previsão do grupo é apresentá-los para debate público na Semana da Mobilidade, que ocorre em setembro. Não há dados oficiais sobre o tema, em nível nacional. Em Curitiba, pesquisas realizadas na Via Calma da Avenida João Gualberto, região Norte da cidade, registrou 9,4% (2015) e 10,9% (2016) de mulheres, entre os ciclistas do trecho.

Imigrantes e refugiadas aprendem a pedalar

Quando chegou a Amsterdã, nos anos 1990, Agartha Frimpong passava dos 30 anos. E nunca tinha subido numa bicicleta. “De onde eu vim, em Gana, é anormal você ver mulheres de bicicleta. Se você vê elas andando pensa ‘por que estão fazendo isso?’. E aqui na Holanda é algo muito importante”, contou, em entrevista à Gazeta do Povo. A vida seguiu e em 2007 veio o ponto de virada: Agartha sofreu uma parada cardíaca. Começou a pedalar por motivos de saúde. E percebeu que, como ela, muitas imigrantes que moravam no distrito de Amsterdã Sudeste não sabiam pedalar. Foi aí que nasceu o “Stichting Woman Motivating Integration”, para ensinar mulheres a andar de bicicleta

O projeto começou com 23 alunas. Hoje, 1,5 mil já se formaram. Outras 75 concluem o curso, que tem duração de 12 semanas, na próxima terça-feira (19). “No começo, os maridos vinham junto. Eu conversava com eles de forma pacífica, para eles entenderem que as mulheres precisam de sua liberdade, que fossem embora e voltassem depois. Hoje eles trazem as mulheres e vão para casa. Algumas vêm sozinhas”, conta Agartha, hoje com 61 anos.

Além do preparo físico, as aulas dão mais chances de locomoção às alunas. “Sair para fazer compras, levar as crianças na escola, é tudo muito caro, e a bicicleta é econômica”. Além disso, cada uma ganha um diploma ao se graduar no curso. Muitas não têm escolaridade, e nunca receberam título similar. São mulheres de diferentes origens. Imigrantes e refugiadas de países como Gana, Paquistão, Marrocos, Suriname, Nigéria, e até holandesas. O sucesso do projeto chamou a atenção da prefeitura de Amsterdã Sudeste, que hoje arca com os custos das bicicletas.

Iniciativa semelhante surgiu em Berlim, no ano passado. Mulheres sírias, fugidas da guerra em seu país entre o presidente Bashar Al Assad e opositores, entraram em contato com a alemã Katie Griggs, em busca de aulas de ciclismo. Berlim é uma cidade onde 72% da população têm bicicleta, e apenas 35% possuem carros. Além das aulas, Griggs resolveu arrecadar dinheiro para comprar e doar bikes às refugiadas. Até novembro do ano passado, mais de mil euros (cerca de R$ ) já tinham sido arrecadados, segundo informações da Acnur, agência da ONU para refugiados.

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