Mesmo quem não conhece de perto o Rio de Janeiro sabe que a “zona sul carioca” é sinônimo de riqueza. A fama tem base na realidade. A região concentra moradores de alto poder aquisitivo, e comércio e serviços são voltados para esta faixa de renda. Mas, ao colocar uma lupa nos dados do IBGE, um pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) viu que a região é margeada por comunidades pobres. E negras. Especialistas falam até em um “apartheid racial”, em referência à África do Sul. Na cidade olímpica o fenômeno tem suas particularidades, mas guarda relação com desigualdades espaciais em outras cidades no Brasil e no mundo.
A relação entre raça e renda não é mera suposição. Dados do Censo mostram que bairros com moradores de menor renda concentram negros (pretos e pardos, pela classificação do IBGE). O trabalho de jogá-los no mapa foi do estudante de Geografia da USP Hugo Gusmão, autor do blog Desigualdades Espaciais. Ele utilizou dados dos setores domiciliares do Censo, que utilizam universos mais restritos, e assim são mais precisos.
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Cada setor censitário têm uma média de 300 pessoas, equivale a uma quadra em uma grande cidade. Em geral, pesquisadores e imprensa analisam dados do Censo por município ou distrito (que equivale a um bairro), o que apaga algumas especificidades. Com os setores, Gusmão conseguiu produzir um “mapa de pontos”, iniciativa inédita no Brasil, em que cada pontinho equivale a uma pessoa.
“Se você pegar só os distritos, a Zona Sul vai aparecer como zona rica, com IDH alto, mas nos setores isso [as diferenças] se destaca. No Rio são os morros, aqui [em São Paulo] são favelas, conjuntos habitacionais”, conta o pesquisador. Ele descobriu o mapa de pontos em uma pesquisa sobre guetos nos Estados Unidos.
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A impressão estava correta. Os mapas são muito parecidos aos que foram feitos a partir do Censo de 2010, nos Estados Unidos. Eles mostraram que a segregação racial ficou ainda maior nas cidades norte-americanas desde os anos 1950 e 1960, quando foram aprovadas leis contra o racismo, explica o professor João Costa Vargas, do departamento de Diáspora Negra na Universidade do Texas, nos EUA.
É um fenômeno internacional. “Ficaria chocado em achar no Brasil documentos históricos que mostrassem cidades em que pessoas negras e não negras vivem de forma não segregada. Acho que nunca houve isso”, opina Costa Vargas, que estuda a questão racial tanto nos EUA quanto no Brasil.
Ele acredita que é um tabu para a Sociologia aceitar que, apesar do mito de que o Brasil vive uma “democracia racial”, o país é tão segregado quanto a África do Sul ou os Estados Unidos. “É um apartheid, porque é o padrão civilizatório brasileiro, de exclusão das pessoas negras”, ressalta.
O segregação espacial tem um impacto cultural. Faz com que pessoas de diferentes cores e origens não convivam entre si. Mas interfere também no tipo de cidade que se constrói.
No mundo todo, mapas raciais mostram negros vivendo em locais mais afastados, segundo o professor Costa Vargas. Onde “a participação do Estado é menor, há mais exposição a toxinas do meio ambiente, maior probabilidade de morte por doenças e fatos “preveníveis” (que vão desde a violência policial até a morte por doenças que teriam tratamento em outras áreas da cidade)”.
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No Rio de Janeiro, a segregação espacial tem suas peculiaridades, devido à geografia e ao desenvolvimento histórico da cidade. A lógica da cidade é um pouco diferente da encontrada em Curitiba e em São Paulo, por exemplo, onde uma análise simplista mostra que as faixas de renda são como círculos concêntricos. A pobreza conforme mais afastado do centro. Já no Rio, as favelas nos morros muitas vezes são como ilhas de baixa renda em meio a bairros ricos. A segregação existe, mas a fronteira é mais curta.
Além disso, só nas ultimas décadas a cidade se expandiu para a Zona Oeste, sua maior área em extensão. Até o Censo de 2010, a região representava 48,4% do território, mas abrigava apenas 26,6% da população carioca. Ainda que o local tenha recebido novas favelas e moradias de baixa renda nos últimos anos, também é território de empreendimentos voltados à altíssima renda. É lá que se encontra a Vila Olímpica, por exemplo, construída sobre o antigo autódromo, no lugar onde antes se encontrava uma favela.