Reza a lenda que o mau cheiro do Tâmisa obrigou o Parlamento Britânico a cancelar suas sessões. Era meados do século 19. Logo depois, o naufrágio de um navio levou à morte 600 passageiros, intoxicados pela poluição. No início do século 20, o exército dos Estados Unidos “concretou” rios de cidades país afora para “resolver” o problema do mau cheiro do esgoto. San Antonio e Oklahoma City entre elas. Nos anos 1950, após a guerra da Coreia, a prefeitura de Seoul cobriu o Rio Cheonggyecheon. No lugar, foi construída uma avenida, para facilitar o trânsito da cidade.
São exemplos ao redor do mundo de rios que foram mortos (e, por vezes, enterrados). Mas que ganharam vida nova nas últimas décadas (leia mais sobre esses casos). A revitalização das águas é um processo caro e demorado. E que exige, antes de tudo, desejo e participação da população. No Brasil, talvez pelo excesso de oferta de água doce, o envolvimento dos cidadãos por meio da educação ambiental ainda é pequeno. Muito custosos, os projetos de limpeza esbarram, geralmente, na falta de verbas. Em Curitiba, a infraestrutura de água e saneamento construída nos últimos três séculos contribui para a poluição. Além disso, a geografia da cidade torna a tarefa de limpar os rios quase impossível. Quase.
Ao invés de irem do continente para o mar, os rios de Curitiba “correm ao contrário”, com destino a Foz do Iguaçu (de onde seguem até desaguar no Oceano Atlântico, na Argentina e no Uruguai). O resultado são cursos d’água estreitos e lentos.
Os rios ganham velocidade e volume à medida que avançam, duas características fundamentais para ele ganhar força para despoluir a si próprio. O Rio Iguaçu, por exemplo, nasce tímido na capital e segue imponente, fazendo a fronteira do Paraná ao Sul e a Oeste.
“Quanto maior um rio, maior a quantidade de oxigênio que ele carrega e, portanto, maior a capacidade de depuração, de ele receber matéria orgânica. Por isso se você pegar o esgoto de Curitiba e jogar no Rio Amazonas não vai acontecer nada”, explica o agrônomo Cleverson Andrioli, professor de Governança e Sustentabilidade do Isae/FGV. Utilizado tanto na respiração dos peixes quanto na decomposição de matéria orgânica, o oxigênio presente na água é produzido pelas algas, na fotossíntese, e pelo contato do rio com a atmosfera.
Curitiba sofre em triplo. São poucas quedas d’água; muitos trechos de rios retificados pela ação do homem; e outros tantos de canalizações. Estes casos, em que a água cruza a cidade por meio de galerias subterrâneas, são os mais delicados, pois a cidade foi construída onde antes ficavam as águas. Para recuperar o Rio Belém – único que nasce e morre em Curitiba –, seria preciso abrir ao meio a Avenida Mariano Torres, que liga a Rodoviária da cidade à região do Teatro Guaíra.
Saneamento: problemas de ontem e de hoje
Curitiba vai bem no ranking brasileiro de saneamento. Com 99% de esgoto coletado, o tratamento chega a 88,44% do total. Mas este pouco que falta é uma pedra no sapato da limpeza dos rios. “A rede hoje não alcança todas as bacias, nem sempre é eficaz, em alguns lugares existe, mas não funciona como deveria [porque ficou velha e rompeu, ou alguém fez uma obra e quebrou a rede]”, resume a chefe do Departamento de Recursos Hídricos da Secretaria de Meio Ambiente de Curitiba, Marlise Jorge. “Há ainda casos em que ela está muito velha. Na parte central de Curitiba uma parte é de argila, tem até de tijolinho, de 300 anos atrás, quando a cidade começou. Aí até a raiz de uma árvore pode romper o cano do esgoto.”
Um problema recorrente da rede de esgoto são as ligações irregulares. Caixas de gordura, vazamentos, e até ligações erradas (entre as casas e a rede de águas pluviais, por exemplo) são encontradas, explica a técnica da Sanepar Mayra de Lara. Em 2012, ela investigou o Rio Areiãozinho, afluente da porção Sul do Belém, para entender por quê ele seguia poluído. Viu que 40% das casas sequer estavam ligadas à rede da companhia, que passava ali em frente. Entre as conectadas, muitas tinham algum tipo de irregularidade. “Tem até pessoas que não permitem que a Sanepar entre [para fazer o teste]. E aí caímos na [questão da] educação ambiental”, conta.
Questão de educação e o “clamor popular”
A falta de educação ambiental tem impacto tanto nas atitudes da população, que muitas vezes se desconecta do rio que está ao seu entorno, quanto do poder público. Maria Inês Gasparetto Higuchi, que coordena o Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica que, ao longo da história, as cidades brasileiras não se preocuparam com os rios urbanos. “Adotaram [eles] como vias de saneamento a céu aberto, com a ideia de que ‘a água leva tudo para longe’, que o rio tem vida própria e força suficiente para se autorregenerar.”
A educação ambiental, mais do que os mutirões de limpeza – ainda que estes sejam importantes – passa por uma mudança na mentalidade, na forma das comunidades verem suas águas. Em todo o mundo, as revitalizações de sucesso contaram com o fator “clamor popular”. Para Maria Inês, a partir do momento que a população passa a ter expectativas em relação aos rios, também serviços públicos como coleta de resíduo, saneamento e construção de áreas de lazer passam a fazer mais sentido. “Nenhuma revitalização que negligencie estes aspectos têm chance de ser bem sucedida”.