Tudo sobre gentrificação é controverso, até mesmo a definição desse fenômeno. Um estudo recente do sociológo Michael Barton comparou os termos usados pelo jornal The New York Times e por pesquisadores para falar do tema. Ele descobriu que os dois lados pouco concordam sobre onde a gentrificação está ocorrendo. E esse não é único ponto em que não há convergência de opiniões. Ora a gentrificação é pintada como um fenômeno destruidor de bairros; ora como um movimento capaz de “salvar” cidades. Essas duas visões antagônicas ocorrem, em parte, em razão de equívocos sobre o significado da palavra gentrificação e sobre os aspectos nela envolvidos. Aqui estão cinco desses mitos sobre o tema (leia abaixo ou veja um vídeo, em inglês, sobre eles)
1. A gentrificação leva a uma queda na criminalidade
Na última década, os índices de criminalidade caíram drasticamente. Observadores das cidades frequentemente relacionam isso à gentrificação. Uma carta de um leitor ao jornal New Orleans Times-Picayune resumiu uma das consequências da gentrificação como “um movimento que leva as cidades a ficarem mais seguras”. Um artigo publicado no site de notícias Mic atribuiu 30% da queda da criminalidade em uma das regiões do Brooklyn ao fenômeno. A lógica nisso é simples: bairros mais pobres tendem a ter mais crimes. A gentrificação, que geralmente traz residentes mais abonados para essas áreas, tende a baixar os índices de criminalidade.
Na verdade, estudos sobre a relação entre o crime e a gentrificação encontraram justamente o contrário: o fenômeno frequentemente leva a um aumento nos índices de criminalidade. Um desses estudos identificou, inclusive, que crimes contra o patrimônio como pequenos furtos e roubos aumentaram em áreas dos Estados Unidos que sofreram gentrificação.
Há pelo menos duas explicações para esse padrão. A mais recente é a de que moradores mais abonados tendem a ser alvos mais tentadores e lucrativos. A outra é a de que o crime geralmente triunfa em meio à instabilidade e ao enfraquecimento das redes sociais – uma consequência da substituição de antigos por novos moradores –, já que os criminosos ficam mais incógnitos e as pessoas, justamente porque não se conhecem, tendem a não cuidar tanto umas das outras. A gentrificação, portanto, por definição, desestabiliza um bairro.
2. A gentrificação causa o deslocamento dos mais pobres para a periferia
Para muitos, a gentrificação é um sinônimo da expulsão da população residente de renda mais baixa de seus bairros originais para outros mais periféricos. O urbanista Richard Florida escreveu no portal especializado City Lab, que o “deslocamento pode ser e é uma grande questão em áreas onde a gentrificação caminha a passos largos”. Já o jornal Charlotte Observer alertou que “o fenômeno pode ser complicado [de resolver], mas que não é um mito, assim como o deslocamento [dos mais pobres] também não é.”
É claro que, quando os bairros mudam, algumas famílias tendem a ser empurradas para fora. Mas minhas pesquisas mostram que aqueles mais antigos dificilmente deixam seus bairros – em parte, em razão das eventuais melhorias que a própria gentrificação pode trazer. Em um estudo, encontrei que a probabilidade para que um morador fosse deslocado de um bairro gentrificado de Nova York era de apenas 1,3%. Outro estudo de 2015 na Filadélfia descobriu algo semelhante: que o acréscimo na renda média do bairro não é precedido significativamente de uma saída de moradores.
O que distingue a gentrificação não é quem se muda para fora do bairro; e sim quem muda para dentro. Em um bairro que passa pela gentrificação, os novos residentes tendem a chegar com uma boa condição financeira. Como resultado, a taxa de pobreza local pode mudar sem que ninguém se mude. Em 2004, eu descobri que a taxa de pobreza de um bairro poderia cair de 12% a 30% em uma década com um êxodo mínimo. Isso porque a gentrificação normalmente leva a novas construções ou mesmo a investimentos em propriedades que antes estavam vazias.
Também não há relevância no fato de que a vasta maioria dos bairros pobres do país não esteja sofrendo gentrificação. Fora das grandes áreas urbanas como Nova York, Washington e São Francisco, a maioria das áreas pobres continua pobre.
3. Moradores antigos odeiam a gentrificação
O fenômeno da gentrificação tem uma conotação negativa bastante aceita, geralmente descrita como uma perda dos “velhos tempos” de um bairro. Essa ideia é ampliada pela imprensa. Um artigo na revista In These Times sobre gentrificação na área de Nova Orleans, na Louisiana, afirmou que “quando os nativos New Orleanians conversam, o assunto principal inevitavelmente acaba nos conflitos com os novos migrantes” da cidade. Em uma reportagem sobre o projeto para a construção de um prédio de apartamentos em Washington, a colunista da Bloomberg Views Megan McArdle escreveu que “os residentes de longa data eram veemente contrários à ideia com base no argumento de que isso [o novo prédio] causaria a gentrificação”. O colunista do New York Daily News Josh Greenman resumiu a atitude desses moradores como “nós chegamos aqui primeiro”.
É claro que algumas pessoas não querem ver seus bairros mudarem. Mas frequentemente também os residentes apreciam certos aspectos da gentrificação. Proprietários de imóveis, por exemplo, tendem a ver uma valorização de seus bens. Por consequência, tende a haver também uma oferta maior de serviços e comércio em áreas antes esquecidas ou degradadas. Com a gentrificação, os moradores podem, então, não precisar mais se deslocar para fora do bairro para fazer uma refeição fora de casa ou comprar produtos frescos.
Se os moradores apreciam ou não as mudanças é algo que depende, basicamente, de duas coisas: [da comparação com] as amenidades e serviços presentes no bairro antes da gentrificação, e se os novos serviços beneficiam as pessoas que já moravam ali. Nos bairros que antes sofriam com a falta de investimentos e de serviços essenciais é possível achar residentes antigos que passem a apreciar a gentrificação. Como o Washington City Paper escreveu a respeito de Distrito: “A maioria dos antigos residentes de bairros de baixa renda não clamam pela gentrificação exatamente, mas eles querem aquilo que geralmente vem junto [com o fenômeno]: novas lojas de conveniências e mercados e outros serviços; melhorias nas conexões e infraestrutura de trânsito; queda na criminalidade; e uma atenção a mais da prefeitura para aquela área.”
4. Os novos moradores são brancos
A imagem estereotipada do ator gentrificador, ou seja, do novo morador do bairro que sofre gentrificação, é a do jovem hipster branco ou ainda a da jovem menina branca que trata o cachorro como seu filho. Um morador de Distrito de Columbia, por exemplo, protestou contra os “brancos gentrificadores” com sinais no gramado da sua casa. [O diretor] Spike Lee também já falou do fenômeno com um tom explicitamente racial, questionando “porque é preciso uma enxurrada de brancos nova iorquinos em áreas como o sul do Bronx, Harlem, Bed Stuy e Crown Heights para que a infraestrutura melhor?”. Como o site Gizmodo colocou: “Pelos Estados Unidos, a ocupação branca é associada à gentrificação.”
Mas a gentrificação não é uma “coisa de branco”. Em vários bairros, asiáticos, negros e latinos de classe média são grande parte do processo. Os chamados millennials – nascidos entre 1978 e 1999 – e os jovens trabalhadores em geral de todas as raças apreciam a vida cosmopolita. Em um estudo de 2009,aliás, eu descobri que bairros que passam por gentrificação são mais diversos em termos de raça que os que não passam pelo fenômeno.
E há uma outra razão para isso também. Kesha Moore, pesquisadora da Universidade de Drew, mostrou que jovens profissionais são geralmente levados a se instalar em bairros de baixa renda em razão de um desejo de colaborar com as comunidades onde eles mesmos ou seus pais cresceram. Além disso, em bairros com forte presença de “minorias”, os gentrificadores de outra raças e origens tendem a não ser tão notados como os gentrificadores brancos. E mesmo quando nós os notamos, nós somos quem os classificamos como gentrificadores.
5. A gentrificação acontece naturalmente
Quando nós falamos sobre um bairro gentrificado, nós podemos imaginar algo específico – uma rua cheia de novos cafés, boutiques e outros produtos artesanais. “A gentrificação provavelmente significa tomar um café na Starbucks ou outra cafeteria do tipo”, escreveu o Gizmodo. A associação com a rede de café, aliás, parece ter se tornado tão sinônimo da coisa, que o jornal The Guardian perguntou: “Em cidades gentrificadas o que vem primeiro: Starbucks ou um aumento no preço dos imóveis?”
É verdade que vários dos bairros que sofrem a gentrificação recebem tais negócios e amenidades. Mas isso não é inevitável. Como a socióloga Sylvie Tissot mostrou, os agentes gentrificadores não confiam apenas nas forças de mercado para trazer esse tipo de negócio. Eles mesmos podem trabalhar para mudar a área para onde foram atraídos pela moradia de preço mais acessível. Isso pode significar contar com a política e os agentes fiscais para minar os botecos das proximidades, ou pressionar os legisladores a subsidiar negócios que “se encaixam melhor” na nova realidade do bairro. Então é claro que as forças de mercado ajudam a mudar comercialmente os bairros gentrificados, mas muitas vezes também há “ativistas e legisladores” trabalhando por trás de uma “mão invisível” em prol de seus próprios interesses.
E por vezes o pobre tenta usar dessas mesmas engrenagens para mudar seu bairro. Veja o Harlem, onde os moradores persuadiram proprietários de imóveis e investidores a apostar na comunidade nos anos 1970. O sucesso deles pode ter aberto o caminho para a chegada de mais “forasteiros” e impulsionado o processo de gentrificação. Mas as mudanças [para que isso ocorresse] começaram bem antes das alterações no quadro demográfico [hoje observado].