Má-fé
Agente multava para se vingar
Um dos casos mais escandalosos de má-fé de um agente de trânsito aconteceu em Curitiba, em 2006. A agente da Diretran Luciane Estela Barros Domingues foi demitida por justa causa, acusada de emitir 14 multas irregulares para três condutores.
A mãe de Luciane, Ivone Estela Barros, atuava como síndica em um edifício no Portão, e os três motoristas, que viviam no mesmo local, teriam questionado suas ações. As multas começaram a ser aplicadas em novembro de 2006 e persistiram até meados de 2007.
Edson de Oliveira foi penalizado seis vezes, somando R$ 1 mil de prejuízo e 22 pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Carlos Vandembruck recebeu sete multas e Rui Loyola, uma.
Na denúncia apresentada pelo Ministério Público na época, o promotor de Justiça Odoné Serrano Junior afirmava que Luciane Domingues "produziu falsamente tais documentos públicos, na modalidade de falsidade ideológica, ao emitir autos de infração, registrando infrações de trânsito que de fato não ocorreram, de modo a saciar seu ignóbil desejo de lesar as pessoas".
Para o promotor, o comportamento da agente comprovava o abuso de poder em cargo público. "Inaceitável que um agente público se utilize dos poderes a ele conferidos para impor desforra, castigo ou reprimenda, em satisfação de cunho pessoal ou familiar", disse Serrano.
As 14 multas aplicadas foram canceladas e os pontos nas carteiras dos condutores foram zerados.
O que diz a lei
Confira por quais meios uma multa pode ser aplicada e as sanções previstas:
Código de Trânsito Brasileiro, Artigo 280 - As infrações devem ser comprovadas por aparelhos eletrônicos, audiovisuais, reações químicas ou qualquer outro meio tecnológico, além, obviamente, da declaração da autoridade de trânsito. Quando a autuação em flagrante não for possível, "o agente de trânsito relatará o fato à autoridade no próprio auto de infração, informando os dados a respeito do veículo (...) para o procedimento previsto no artigo seguinte".
Lei 8.429/92 - "Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições...". Além das sanções administrativas, o responsável pela irregularidade está sujeito a inúmeras penas, como ressarcimento do dano, perda de função pública e pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração recebida. A amplitude da pena será avaliada pelo juiz em cada caso.
O engenheiro Luiz Groff foi multado quatro vezes em apenas dois minutos por um policial militar, em Caiobá, em janeiro. O militar anotou que o veículo de Groff estava estacionado em fila dupla, à frente de guia rebaixada e de entrada de propriedade e, além disso, o condutor estava sem cinto de segurança. No local da aplicação das multas, contudo, a via é de pista única, além de não existir guia rebaixada nem entrada de propriedade. "Só paramos o carro para trocar o motorista, porque minha esposa e neta iam ficar em um restaurante. O guarda disse que iria me multar por estacionar em fila dupla", conta. Mesmo fotografando o local da multa, a defesa prévia foi indeferida.
Groff não é exceção, pois apenas 8% dos recursos protocolados no Detran são aceitos. De 2008 para 2009, as defesas apresentadas ao órgão cresceram 6,5%, saindo de 25.878 para 27.588. O total de explicações aceitas, porém, manteve-se estável. Há dois anos, 2.030 recursos foram deferidos, somando 7,8%; no ano passado, 2.242, ou 8,1% dos recursos, foram aceitos. As penalidades com maior número de recursos impetrados são avanço do sinal vermelho, trafegar em até 20% acima da velocidade da via, estacionamento irregular, falta de cinto de segurança e uso do celular. Casos como a falta do uso de cinto de segurança se repetem com frequência e têm como prova apenas a palavra do agente de trânsito.
Enquanto a Constituição Federal prevê a inocência até prova em contrário, o agente público tem presunção de legitimidade, e seus olhos são o meio de comprovar as ilegalidades, conforme o Artigo 280 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). No embate entre a palavra do condutor e a do funcionário público, há tendência de se aceitar a versão deste último, sobrando ao motorista a tarefa de provar sua inocência. Os funcionários públicos, porém, são passíveis de erro, além de cometerem atos comprovados de má-fé. Em 2007, a agente da Diretran Luciane Estela Barros Domingues foi indiciada por aplicar 14 multas irregulares (veja matéria ao lado).
Fé pública
Na visão tradicional do Direito Administrativo, no qual se enquadram o trânsito e as fiscalizações sanitárias, por exemplo, parte-se do princípio de que o agente tem fé pública. "Isso faz com que decorra a inversão do ônus da prova. Ou seja, o condutor deve provar sua inocência", afirma Marcelo Araújo, professor de Direito de Trânsito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Paraná (OAB-PR). "Esses julgamentos são administrativos, estão fora da alçada do poder judiciário, havendo tendência de reconhecer a presunção de legitimidade do funcionário público", esclarece.
Por outro lado, o coordenador do mestrado em Direito do Unicuritiba e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP, Daniel Ferreira, interpreta a questão de forma diversa. "Entendo que entre a palavra do guarda e a do acusado, prevalece a do motorista, porque as provas são de mesma ordem e se anulam, mesmo que o condutor esteja mentindo", diz. Os administradores do trânsito costumam analisar a questão pelo viés tradicional, dando preferência à palavra dos agentes. Para Ferreira, o motivo para a postura contrária dos órgãos se deve à ignorância jurídica e ao descaso. "Isso aumenta a vulnerabilidade dos cidadãos frente ao poder público", avalia.
Coordenador de Infrações do Detran, Gustavo Fatori explica que a palavra do agente é considerada prova assim como os meios eletrônicos (confirmação de excesso de velocidade, por lombadas eletrônicas e radares, e de teor alcoólico pelo bafômetro). "Erros e multas erradas são exceções no universo de infrações aplicadas", diz. Mesmo em cidades onde o trânsito é municipalizado, o Detran responde por penalidades relacionadas à regularidade do veículo. A fiscalização é de responsabilidade de policiais militares, que podem perder o direito de exercer a função caso se constate ilegalidade na aplicação de multas.
Afastamento
Apenas um agente de trânsito da Diretran foi afastado de suas funções por ato comprovado de má-fé, conforme o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Urbanização no Paraná (Sindiurbano), Valdir Mestriner. De acordo com ele, somente Luciane Estela, que aplicou 14 multas ilegais, deixou de exercer a função nos últimos anos. De acordo com a Urbs, de um total de 387 agentes de trânsito atuando em Curitiba, 42 foram afastados entre janeiro de 2009 e junho de 2010. Nesse número, estão incluídas as dispensas solicitadas pelos próprios agentes, pedidos de afastamento médico e o fim dos contratos de experiência. A Urbs não informa o total de demissões por erros.
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Interatividade
A palavra do agente de trânsito deve ter mais peso do que a do motorista?
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