Todos os dias, o vira-lata Nep faz festa quando o servidor municipal Anizio Calegario de Souza, 46 anos, chega ao trabalho. Para retribuir, ele dedica um tempinho para brincar com o cachorro, adotado pela equipe do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Curitiba, na CIC.
“Se pudesse, levaria esse cachorro para casa. Gosto do jeitão alegre dele”, diz. Além do vira-lata, Anizio também cuida dos cães de grande porte recolhidos pela Guarda Municipal. Dá comida, banho e, de vez em quando, os leva para passear. “Sempre gostei de bicho”, enfatiza.
O que alguns colegas de trabalho sequer imaginam é que nenhum desses cachorros estaria vivo se cruzasse o caminho de Anizio há 11 anos, quando ele integrava a última equipe de laçadores da carrocinha. “Eu matei 7 mil cachorros e me arrependo todos os dias. Sofro muito por isso. Se pudesse, mudaria o roteiro da minha vida”, resigna-se Anizio, que, de vergonha, jamais contou à própria filha, pequena na época em que recolhia cachorros, que foi laçador da carrocinha.
“Pedi perdão muitas vezes, mas sei que isso não traz nenhum desses bichos de volta. Esse é o maior peso que levo na consciência. E não dá para apagar”, prossegue o agente de controle de zoonoses, que, desde 2005, quando a prefeitura suspendeu o extermínio de animais, atua no setor de Vigilância à Leptospirose e Raiva, onde hoje é chefe.
Desde que a carrocinha acabou, o município segue recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que a melhor forma de controle populacional de cães é a conscientização para a posse responsável e a esterilização de animais. Hoje, a Guarda Municipal recolhe apenas animais de grande porte que causem risco à população.
De 1994 a 2005, Anizio circulou por todos os bairros de Curitiba à caça de cachorros. Por semana, a equipe chegava a laçar 500 animais. Ao encerrar as atividades, a carrocinha tinha média anual de 15 mil cães mortos por ano na câmara de gás do CCZ. “A gente não vencia. Tinha dias que a carrocinha saía às 8h e às 10h30 já tinha que voltar de tão lotada que estava, com 60, 70 cachorros”, recorda.
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A carrocinha também recolhia cachorros nas residências. Geralmente animais velhos, doentes ou filhotes. “Às vezes a gente levava a cadela com dez filhotes. Outras vezes o cachorro estava tão doente, tão bichado, que nem conseguia se levantar. Naquela época pouca gente levava o bicho em veterinário. As pessoas não cuidavam. E tinha os que eram maltratados mesmo”, revela.
Além de laçar, Anizio ajudava a exterminar os animais que não eram recuperados pelos donos. Os proprietários que pagavam multa e recuperavam os animais eram minoria. “A maioria não estava nem aí. Principalmente quando o cachorro era velho ou doente”, afirma.
No início, a morte era por injeção letal . A partir de 1998, quando a eutanásia passou a ser na câmara de gás, os laçadores escolhiam quais seriam sacrificados. “Só os mais bonitinhos eram poupados porque tinham mais chance de adoção”, revela.
Rejeição
O trabalho de Anizio nunca foi bem-visto pela família e amigos. Para evitar confusão, ele evitava dizer o que fazia. A mãe era quem mais se incomodava: vivia pedindo ao filho para que largasse a carrocinha. “Ela me perguntava se eu não tinha remorso. Eu respondia que era meu trabalho, de onde eu tirava meu sustento. Eu tinha que fazer”, afirma Anizio, que chegou a laçar o cachorro do próprio vizinho.
Nas ruas, a pressão também era grande. Bate-boca com os donos dos bichos era todo dia. E toda semana um dos laçadores ia para a delegacia prestar queixa de agressão. Na Vila Trindade, certa vez, no lugar dos cães, quem teve de fugir foram os laçadores. “Chegaram dois caras armados e disseram ‘aqui vocês não vão pegar o cachorro de ninguém’”, lembra.
Da dona de um cachorro apreendido, ele e os amigos receberam uma praga: todos morreriam de câncer. “Como são as coisas: quem morreu da nossa equipe foi de câncer e um está em tratamento”, aponta.
De ataques de animais, Anizio lembra da mordida de um fila. Ao chegar ao posto de saúde, comunicou as enfermeiras que era alérgico a penicilina. Mesmo assim, teve a medicação aplicada na veia. “Passei muito mal, quase fui internado. Não pela mordida, mas pela reação à penicilina que, eu acho, aplicaram de propósito por eu ser da carrocinha”, suspeita.
Mudança de mentalidade
A mudança de mentalidade só veio em 2002. Ao ver os filhotes se mexerem na barriga de uma cadela prenha que havia acabado de ser sacrificada, Anizio teve um choque. “Até ali eu era frio. Mas aquilo mexeu comigo, me fez questionar se o que eu fazia era realmente correto”.
Mesmo assim, seguiu no trabalho e custou a acreditar que a carrocinha realmente iria acabar quando a pressão das ONGs de direitos animais começou a ter efeito. “Eu achava que não ia acabar nunca. Mas ainda que bem que acabou. O fim da carrocinha mudou a minha vida”, atesta Anizio, que, após 20 anos, voltou a estudar com o fim da atividade. Formou-se técnico em enfermagem e alcançou um cargo de chefia no Centro de Controle de Zoonoses.
“Vi que poderia continuar na mesma área, mas sem tirar a vida dos animais. Hoje não escondo de ninguém o que faço e me sinto muito bem quando capturo um bicho, como um morcego que está numa casa, e depois solto na mata”, compara.
Mesmo assim, o passado incomoda. Logo que a carrocinha acabou, um amigo quis colocar de brincadeira no pescoço dele o laço com o qual capturava os cães. “Não deixei. Na hora me veio a aflição dos cachorros que eu lacei. Não vou fazer isso nunca porque não gosto que brinquem com o que eu fazia”, afirma.
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