Os primeiros resultados dos laudos sobre salgados recolhidos em pastelarias do Rio, denunciadas por irregularidades numa série de reportagens do jornal O Globo, inclusive trabalho escravo e uso de carne de cães como recheio, revelam que os estabelecimentos vistoriados têm péssimas práticas de higiene. Mais de 50% das amostras recolhidas — ao todo foram 103 produtos usados nas análises — estavam contaminadas. Entre as bactérias detectadas, os exames chamaram a atenção para a presença de grande quantidade de Escherichia coli, indicativa de contaminação por fezes humanas.
Ministério Público do Trabalho investiga máfia que alicia chineses para trabalho escravo
Três inquéritos que investigam a prática foram abertos desde 2013 e encaminhados à Justiça Federal. Fiscalização encontrou ainda carne de cão que seria utilizada para rechear pastéis
Leia a matéria completaApós denúncias, pastelarias têm queda no movimento no Rio
Ação de fiscais do Trabalho e suspeita de uso de carne de cachorro afastam clientes
Leia a matéria completaOs laudos da Vigilância Sanitária municipal, ligada à Secretaria Municipal de Saúde, foram obtidos com exclusividade pelo jornal. De acordo com a secretaria, as análises preliminares são tão preocupantes que vão demandar outras ações de fiscalização nesses estabelecimentos. Durante as vistorias, já foram encontrados sinais de péssimas condições de higiene, com animais circulando entre alimentos em preparação, cozinhas sujas e lixo mal-acondicionado.
As análises estão sendo feitas no Laboratório Municipal de Controle de Produtos. De acordo com Eliane Maria Cardozo Miranda, coordenadora da unidade, a presença de coliformes fecais mostra que os funcionários das lanchonetes estão manipulando os alimentos com as suas mãos contaminadas.
“É um dado alarmante para toda a sociedade. Dentro do quadro de mais de 50% das amostas contaminadas, 12 laudos apontaram coliformes fecais provenientes da flora intestinal humana. Ingerindo alimentos contaminados pela Escherichia coli, as pessoas têm diarreia, náuseas e dores abdominais. É um retrato claro da falta de higiene dos comerciantes”, diz ela, que trabalha há 35 anos na área.
A informação chamou a atenção do coordenador da Câmara Técnica de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Cremerj, Celso Ferreira Ramos Filho. O infectologista, que é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz um alerta.
“Isso pode significar que os alimentos não estão sendo fritos de forma correta. Quando um alimento processado é cozido a 70 graus por dois minutos, as bactérias encontradas nos recheios são destruídas. É um resultado surpreendente e alarmante”, afirma.
Outro resultado que chocou os técnicos foi a presença de uma bactéria — Staphilococcus aureus — típica de ferimentos com secreções e pus. De acordo com o superintendente da Vigilância Sanitária, Luiz Carlos Coutinho, esse micro-organismo é transmitido aos alimentos quando o cozinheiro os manipula com infecções nos olhos, no nariz, na boca ou na pele (em pontos como as mãos e os pulsos). Ao ingerir essa bactéria, o consumidor pode sofrer intoxicação alimentar.
Uma outra bactéria perigosa encontrada nos recheios reprovados foi a Bacillus cereus. É um tipo de micro-organismo que também causa intoxicação alimentar, com náuseas e vômitos. De acordo com a coordenadora do laboratório, a bactéria aparece em alimentos manipulados de forma inadequada e mantidos sob refrigeração insuficiente.
“Isso é muito comum também quando os salgados já estão expostos há horas na vitrine”, diz ela. “O resultado dessas análises preliminares aponta um quadro grave no comércio alimentício carioca, além de demonstrar que o trabalho de fiscalização precisa ser diário e contínuo. A pessoa que se propõe a trabalhar com alimentos precisa saber que essas contaminações levam a diversos problemas de saúde. Esses comerciantes precisam passar por um treinamento antes de manipular alimentos. Algumas pastelarias interditadas tinham vasos sanitários, mas não tinham pias para os funcionários lavarem as mãos. A consequência disso está explícita no resultado das análises”.
De acordo com a Vigilância Sanitária, que ainda aguarda o resultado dos exames em outras amostras recolhidas, a operação especial de fiscalização das pastelarias começou no dia 16 de abril e terminou neste domingo (17). Do total inspecionado, 15 estabelecimentos foram totalmente fechados. Outros 17 foram interditados por falta de higiene, tendo que se regularizar de acordo com determinações da Vigilância. Além disso, 36 foram intimados a fazer obras de melhorias estruturais.
Dos 63 estabelecimentos cujas amostras já têm o resultado laboratorial, 51 receberam da Vigilância Sanitária autos de infração por conservação inadequada de alimentos, venda de produtos impróprios para o consumo, deficiência na sua manipulação e falta de higiene. No total, foi descartada meia tonelada de alimentos — entre frango, carne de vaca, bacalhau, presunto e queijo, além de molhos.
Luiz Carlos Coutinho garantiu que as inspeções vão continuar. Ele pediu à população que colabore, denunciando as lanchonetes com problemas.
“Estaremos atentos às denúncias de consumidores que presenciarem alterações nos alimentos e condições inadequadas da higiene nos estabelecimentos. A Vigilância Sanitária orienta o cidadão a fazer a denúncia à central de teleatendimento 1746, para que equipes possam ir ao local verificar a situação e, caso sejam constatados problemas, aplicar as sanções previstas em lei, que vão de multas à interdição total do estabelecimento”, diz Coutinho.
A origem da carne usada nos recheios dos salgados vendidos nas lanchonetes é uma das maiores preocupações do consumidor. Entretanto, a Vigilância Sanitária informou que, para se ter essa informação com segurança, análises laboratoriais não são suficientes: o processo exigiria técnicas complexas, como o exame de amostras de DNA.
Para driblar a desconfiança dos consumidores, já há quem recorra à criatividade. É o caso de Iguassi Moraes, dono de uma pastelaria na Avenida Venezuela, na Zona Portuária. Quem passa em frente à sua lanchonete escuta latidos de cachorros. São dos bichos de estimação do comerciante, que gravou os animais em casa. Ao ser atraído pelo barulho, o pedestre logo vê um enorme aviso, desenhado na entrada: ali diz que o local só usa carne bovina em seus recheios e que cachorros devem ser amados e protegidos.
“Isso é uma satisfação para o público. É uma forma de dizer que não somos maus comerciantes, como aqueles que estão prejudicando o trabalho de pessoas corretas. Depois dessa brincadeira, já percebo um aumento na minha clientela”, conta Iguassi, informando que também contratou um novo pasteleiro para melhorar o cardápio.
De acordo com Lílian Assis, nutricionista da UFRJ, para evitar o quadro de contaminação encontrado pela Vigilância Sanitária nas pastelarias do Rio, é preciso que os comerciantes e cozinheiros tomem uma série de medidas — algumas, na verdade, bem simples, como lavar as mãos regularmente, antes, durante e após a preparação dos alimentos e o manuseio de objetos que estejam sujos.
“Em alguns estabelecimentos, foram encontrados animais. É preciso haver uma higienização criteriosa sempre que o comerciante tiver contato com animais e, principalmente, depois de utilizar o banheiro. Outra dica é evitar o contato entre alimentos crus e cozidos”, diz.
A nutricionista também recomenda outros cuidados. “A produção de alimentos sem contaminação depende de medidas técnicas que devem ser implementadas em toda a cadeia produtiva, inclusive no transporte e na estocagem”.
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