Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Urbanismo

Método vileiro de sobrevivência

"Bateu no portão certo", avisa Nadir Pereira de Lima, 56 anos, ao ser perguntada se o lugar em que mora é mesmo a Vila Formosa. A dona de uma casa de madeira típica da zona operária curitibana chegou à região – hoje pertencente ao Novo Mundo – em 1966. E garante que é uma das pioneiras, afirmação ouvida a torto e a direito aqui e ali, o que leva a duvidar da data de nascimento da região. O Ippuc diz que a Formosa é de 1976. Mas há moradores, como o pintor aposentado Antônio Sawtczuk, 73 anos, que chegaram ali em 1955. "Tinha oito casas. Pagava 631 contos pelo meu terreno. E já era Formosa naquele tempo", informa, sobre o loteamento de 40 alqueires feito pela Caixa Econômica Federal numa zona então pouco explorada. "Já foi muito bom, mas hoje estamos esquecidos pelo poder público", lamenta.

Mas que nada. Nem a data incerta de fundação, nem ter ficado ao deus-dará incomoda tanto os moradores como ouvir dizer que a vila não está no mapa. Mesmo havendo um ônibus com letreiro garrafal e inspirador escrito "Formosa" circulando há décadas por ali. "Não tem no mapa? Como pode?", protesta o aposentado Evaldo Eliseu Pereira, 76 anos, na vila desde 1974. Ele põe uma pilha de escrituras em cima da mesa para provar na papelada que a Vila Formosa existe.

É quando aparece outra faceta da história das vilas: elas fazem a dança das cadeiras entre os bairros. No tempo em que Pereira chegou, pertencia ao Portão, como cada metro quadrado da zona sul da cidade. O filho de Evaldo, o empreiteiro João Pereira, de 41 anos, conta que até pouco tempo jurava ser morador do Capão Raso. Mas não se importa. Sempre que se apresenta, o faz a caráter. "Sou da Vila Formosa." Ele se desmancha: "Quem vem morar aqui não sai. O lugar é tranqüilo. A modernidade demora a chegar. Tudo fica mais ou menos como sempre foi."

A atitude "vileiro com orgulho" é clássica. O bairro titular até pode ganhar o crédito, mas ali, na hora da conversa mole de fim de tarde, o assunto preferido ainda é a vila do vizinho. Na Santa Amélia, com 40 anos de idade e hoje parte da Fazendinha, a dona de casa Maria Raimundo, 54 anos, tira de letra vila a vila da redondeza. "Aqui já foi Sibiza, sabia?", principia, enquanto tira da manga histórias que vão dos tempos da invasão, ameaça de despejo e violência à bonança. Nadir, a da Formosa, idem: é um craque no tema. Seu dedo faz círculos enquanto aponta para que lado fica a Vila São Jorge, a Nossa Senhora da Luz, e as pouco conhecidas Pontoni, Campo Alegre e Aurora. A vizinha Vila Leão é citada com pouca simpatia. Vilas brigam, logo, existem. Com ou sem mapa.

Por essa lógica, a Vila Ismênia tem pouca chance de ressuscitar dos mortos. O que sobrou do lugarejo, na divisa do Cabral com o Hugo Lange, é uma placa presa ao muro alto de uma casa. O vizinho da casa da placa, o aposentado Victor Carriel, diz que ninguém mais se identifica com Ismênia. Algumas quadras abaixo, as irmãs Sueli e Ana Maria Scandelari concordam, embora respondam à queima-roupa que vila era ali. E como era.

Em segundos, a dupla se deixa levar pelo efeito mágico da palavra "vila". Tanto que largam de lado o trabalho da floricultura – instalada na frente da casa – para chamar às falas a mãe, a octogenária Ângela, para lembrar dos tempos em que a Vila Ismênia era cheia de sapos. "Tinha olho de água. Usávamos roupa de algodão cru. Imagine a cor que ficava no fim do dia. A gente não precisava de quase nada. Ah! Eu era boa na bola de gude", festeja Ana Maria.

Não muito longe dali, a saudade divide opiniões e a conversa de muro entre as vizinhas Eunice Moreira e Marilda Zimmermann. As duas são moradoras daquela que é uma das vilas mais antigas de Curitiba, a Colônia Argelina, no Bacacheri. O local teve origem em 1869, com imigrantes vindos da Argélia. Reza a lenda que a terra não era lá essas coisas. Até que a colônia virou Bacacheri, um daqueles bairros que tem tanto a ver com a cidade quando o Bexiga e o Braz com São Paulo.

"Tenho saudade de antigamente", diz Marilda, que chegou à colônia há exatos 40 anos e tem ali o seu cenário de melhores momentos. Eunice, nem pensar. Está mais preocupada com as árvores amazônicas que ameaçam despencar sobre sua casa num dia de temporal e que tanto trabalham dão no outono. "Saber que aqui foi uma vila como a Colônia Argelina não vai mudar nada. Na época, a gente nem se ligava muito nisso."

Tem quem se importe. Maria Becker de Freitas, 82 anos, 40 de Vila Diana, na Barreirinha, é vileira com registro em cartório. Tirando o nome da rua – uma homenagem ao filósofo René Descartes – autor do Discurso do método – tudo indica que o nome oficial não faz diferença nenhuma. Há casas de madeira em cores eslavíssimas, grama plantada na área da calçada, nome dos vizinhos na ponta da língua e cadeiras na varanda para caso de alguma visita chegar. Só falta mesmo a santinha na capela de pedra construída no quintal. "Não sei quem era essa Diana, mas quando me perguntam onde moro, digo que é na vila", explica a veterana. Esse é o seu discurso. O Ippuc que se vire com o método.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.