Morreu nesta quarta-feira (14) o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Arns tinha 95 anos e estava internado desde 28 de novembro em um hospital de São Paulo com um quadro de broncopneumonia que se agravou nos últimos dias. Leal à carreira religiosa, por meio da qual encorajou sistemas de fortalecimento de comunidades, o seguidor da Ordem dos Frades Menores também deixa legados na história política e social do país, em um reconhecido engajamento na luta pelos direitos humanos.
Nascido em 14 de setembro de 1921 em Forquilhinha, no Sul de Santa Catarina, Dom Paulo explorou diversos degraus da hierarquia católica. Passou pelo seminário, cursou Filosofia em Curitiba entre 1941 e 1943, seguiu para os estudos da Teologia em Petrópolis. Em 1966 foi nomeado bispo auxiliar de São Paulo. Depois, foi nomeado arcebispo e cardeal.
Em todas as etapas, fez questão de mostrar que seu ofício maior não era apenas disseminar convicções. Acreditou desde sempre que digno mesmo era correr risco em nome dos que mais precisam. O que explica uma de suas declarações na ocasião da morte da irmã, a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns, radicada em Curitiba, vítima do terremoto que abalou o Haiti em 2010. “Morreu de uma maneira muito bonita, na causa em que sempre acreditou”, disse o cardeal à época.
Dom Paulo e Zilda Arns foram os grandes idealizadores da Pastoral da Criança, organização fundada em 1983, em Florestópolis, no Norte do Paraná. A entidade foi a resposta de um problema que afligia Dom Paulo. A charada era como engajar a igreja no progresso da saúde de pessoas mais pobres; a solução encontrada foi entender que toda a sociedade pode ajudar a garantir o desenvolvimento integral de crianças e de suas famílias.
“Ele sempre esteve muito presente no dia a dia das comunidades que mais precisavam. E sempre defendeu a união de todos em prol de causas comuns. Nunca achou que era só a igreja que devia assumir o papel principal. Dizia sempre: ‘em vez de atribuir o problema aos outros, tome o problema para si e faça a sua parte para superar esse mal’”, relembra Nelson Arns Neumann, sobrinho de Dom Paulo, coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança e coordenador internacional da mesma instituição.
À frente da secretaria para Assuntos Estratégicos do Paraná, Flávio Arns, também sobrinho do franciscano, ressalta o caráter altruísta de Dom Paulo. Entre risos abafados de saudade e orgulho, lembra que foi o tio quem vendeu o Palácio Episcopal Pio 12, residência oficial dos arcebispos de São Paulo, para usar o dinheiro arrecadado na construção de comunitários na periferia da capital. A venda cerca de US$ 5 milhões foi revertida na criação de mais de mil centros.
“Organização do povo era a palavra-chave dele”, conclui o secretário, recapitulando partes da história da família que ajudam a compor a personalidade de Dom Paulo. “A formação franciscana dele ajudou muito. Mas, ele vem de uma família que valorizava muito a educação. Meu avô, pai dele, foi um dos fundadores de Forquilhinha. Chegaram lá e não tinha anda. Mas mesmo assim tiveram forças para organizar o povo”.
Do confessionário à luta pelos direitos humanos
Considerado um religioso progressista, Dom Paulo sempre esteve muito ligado às mudanças sociais no Brasil. E seu engajamento rompeu os limites do bem-estar comum e chegou aos corredores dos centros de tortura que começaram a se espalhar pelo Brasil na década de 1960. Atuou contra a repressão ditadura, ajudou militantes, envolveu-se na elaboração de dossiês sobre desaparecidos. A atitude rendeu a ele um papel importante nos organismos de luta pelos direitos humanos. Foram ao menos 15 prêmios de reconhecimento. Mas, ao mesmo tempo, inquietou parte da família.
“Eu presenciei alguns tios com medo porque a repressão da ditadura poderia repercutir sobre a família”, conta Neumann. “Mas, sempre que a gente questionava ele vinha com a frase: ‘Coragem. Não tenha medo’”.
A coragem que para o filósofo francês Émile-Auguste Chartier é o alimento das guerras, para Dom Paulo parecia ser alimento da esperança. O destemor à punição e a devoção ao comprometimento fizeram dele um dos autores principais de um dos mais importantes documentos elaborados para denunciar as causas de repressão no Brasil. Foi dele que nasceu o projeto Brasil: Nunca Mais.
“Achamos que as igrejas precisam tomar a iniciativa para assegurar que, através da publicação desse material, tais coisas não aconteçam mais”, traz um trecho da carta de Dom Paulo enviada a Philip Potter, então secretário geral do Conselho Mundial das Igrejas.
Se a coragem de Dom Paulo era incontrolável, ela só competia com sua rigorosidade sistemática, relembra a família. O jeito peculiar e aguçado rendeu dezenas de anedotas, hoje recontadas como boas lembranças por seus sobrinhos. O franciscano costumava caminhar seis quilômetros todos os dias. Almoço era sempre no mesmo horário. Nem um minuto a mais, nem um a menos. E recorria a sinais para que seu sermão não passasse dos sete minutos (se não, nem as paredes escutam mais, refletia).
“Foram muitas histórias fantásticas, muitas lições. Mas acho que nenhuma mais importante do que a que é só a gente se ajudando que vamos construir uma sociedade justa e fraterna”, finaliza o sobrinho Nelson Neumann.