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Café da manhã na Celu: camaradagem dá o tom nas relações entre os moradores | Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
Café da manhã na Celu: camaradagem dá o tom nas relações entre os moradores| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Depoimento

Heliberton Cesca, repórter de Vida Pública da Gazeta do Povo.

80 ou 90 litros de água sanitária?

"Depois de entrar na Celu, ela nunca mais sai de você." Eu ouvi essa frase uma vez e nunca mais consegui esquecê-la. A Casa do Estudante Luterano Universitário ficou mesmo impregnada na minha formação moral e cívica. Não só pelos valores, mas pelo batismo realizado nas águas verdes e gosmentas do Passeio Público.

Entrei na Celu um piá, aos 20 anos, em 2003, para concluir a faculdade de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná. Saí de lá no fim de 2005, com o diploma debaixo do braço. Porém carregava no coração uma penca de irmãos, duas "veias" e uma "segunda faculdade", graças à possibilidade de aprendizado humano e social que os três anos de Celu me ensinaram.

O sistema democrático é a base de todas as decisões. Para se ter uma ideia, passamos quase uma hora, em 2004, em uma Assembleia de Orçamento – que reúne todos os moradores – para decidir se iríamos comprar 80 ou 90 litros de água sanitária nos próximos seis meses, para a limpeza do prédio. A responsabilidade de gerir a casa, administrar os gastos e pagar as contas é de todos os 88 moradores. E essa responsabilidade sobre o futuro da casa é a essência da sua sobrevivência ao longo destes 40 anos.

Você recebe a oportunidade de morar em um lugar agradável, sadio e econômico. Mas tem a responsabilidade de mantê-lo e entregá-lo nas mesmas condições – ou ainda melhores – de quando recebeu. Isso motiva a valorizar ainda mais a conquista de um diploma universitário para os guris pobres e de classe média, que se tornaram Celuenses ao longo de todos esses anos.

  • Veja mais sobre o perfil do Celuense

"Vamos lá em casa!" pode ser um convite banal e corriqueiro, aquele de todos os dias, para muitos, mas para os 75 jovens moradores da Ca­­sa do Estudante Luterano Univer­­sitário (Celu) tem um sentido especial. Distantes – e muitas vezes milhares de quilômetros – de suas famílias, eles são unânimes em afirmar que o local transcende ao sentido de ter um lugar para morar. É um espaço onde podem manter sua identidade, integrar-se com pessoas de outras culturas e aprender novos valores. As únicas condições impostas são ser estudante, não ter família em Curitiba e passar pelos testes de seleção.

Balzaquiana, a Celu comemorou 40 anos na semana passada, mantendo seu charme e beleza frugal: poucos adereços e móveis, só o essencial. Pelos inúmeros quartos, distribuídos em três andares, já circularam mais de 800 estudantes, segundo o atual presidente, Edson Luís Lau Filho. Palco de inúmeras histórias, tem o Passeio Público como quintal, e há quem diga que em idos tempos era possível pescar no lago em frente do prédio, pela janela do quarto. Na lembrança coletiva, surgem outras lendas, como a panela queimada misteriosamente, e a curiosidade em saber se um dia a velha prostituta Tia Índia – que joga os longos cabelos pretos e deve ter quase 70 anos – conseguiu que al­­gum jovem aceitasse seu convite.

Durante as quatro décadas, o entra e sai de estudantes – na gran­­de maioria de instituições públicas e quase 100% masculina – significou não só o crescimento educativo, mas o crescimento co­­mo pessoa. "Você chega aqui moleque e, quando volta para casa, a família percebe que você está amadurecendo", define Lau Filho. Isso graças ao engajamento com as se­­cretarias como as de bem-estar, esporte, lazer, limpeza e pastoral, que motivam a participação co­­mu­­nitária. Aprender a arrumar a cama, fazer café e gerenciar uma casa faz parte da rotina.

Experiência

O angolano Avelino Chico, 30 anos, sabe muito bem disso. Che­­gou a Curitiba em 2005, através de um convênio que o país africano tem com o Brasil. Direto de uma pequena cidade chamada Huam­­bo, a experiência de desembarcar em um país diferente e ser acolhido em uma casa de estudantes, com dezenas de desconhecidos, foi única. As três bancas a que foi submetido para o ingresso já serviram de termômetro para identificar que o local era sério e requeria responsabilidade. Em uma delas, ficou mais de 15 minutos com um vaso pesado no colo, sem saber o motivo. Era um teste para saber sua reação ao inesperado. Brinca­­deiras à parte, ele diz que vai retornar a Angola muito diferente do que chegou. "Vim para estudar, mas levo mais do que o título de advogado; levo no pacote o aprendizado de valores", define.

Assim como ele, os integrantes mais jovens também têm essa percepção. O estudante de engenharia cartográfica da UFPR Hamilton Vendrame, 22 anos, morador da casa desde 2009, sabe o quanto são necessários os vínculos criados para sobreviver em uma cidade desconhecida. Vindo de Tupã, in­­terior de São Paulo, ele lembra que as "tias" Ana, Angelina e Nonô, responsáveis pela limpeza e organização do café da manhã, são mais do que funcionárias: são as novas mães, para compensar a ausência das que eles deixaram para trás. São elas que cobram, puxam as orelhas, têm ciúmes das namoradas, mas sabem dar colo e ouvir o choro quando a saudade aperta.

Também sempre dá para contar com o apoio da "veia", como são chamados carinhosamente os companheiro de quarto, por serem moradores mais velhos e experientes. "Não tem como se isolar neste lugar. Você começa a morar com desconhecidos que acabam virando irmãos no futuro", diz Vendra­­me. O estudante de Odontologia da PUCPR Vagner Alcides, 22 anos, também mantém seu respeito a quem é visto como uma figura chave no bom andamento da casa. As dificuldades financeiras sobressaem quando a única renda é proveniente do salário de estágio, mas Alcides diz que os R$ 135 reais pagos mensalmente significam muito pouco quando se pensa no que se recebe do local.

História

Idealizada pelo pastor evangélico Richard Wangen, na década de 70, a casa também é democrática. A religiosidade não é imposta, porém para o estudante de Biologia da PUCPR Lucas Marocci, 19 anos, a tendência nos últimos tempos é de moradores cristãos. "Acreditam em Deus, em Cristo, mas não é condição de escolha", descreve. Para conhecer melhor o perfil dos mo­­radores, no ano passado o estudante de Design Gráfico da Tuiuti Fa­­biano Carvalho Morais resolveu aplicar questionários aos integrantes da casa. Dos 75 distribuídos, 51 deles foram respondidos e ajudaram a traçar o perfil do celuense (veja quadro) e oferecer um instrumento para preparar melhor os novos moradores e motivar os que estão no local. "Valorizar as questões históricas da Celu é uma das nossas metas", diz.

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