"Ainda tô vivo", grita Sérgio Gogola, 53 anos, para uma conhecida que encontra entre uma quadra e outra do "cemitério polonês" de Santo Antônio de Orleans, em Curitiba. Riem. Sérgio é de casa trabalha há três décadas como "profissional do ramo de sepultamentos", como gosta de dizer. Caso insistam em chamá-lo de coveiro, solta uma piada pronta: "Coveiro é quem planta couve". Mais risos.
Pode brincar à vontade. Contando o tempo em que seu pai, Guilherme, trabalhou ali, os Gogolas somam quase um século de serviços fúnebres ao povo de Orleans. Não é a única dinastia por trás daqueles portões altos, na beira da Rodovia do Café, pelos quais ninguém passa sem se benzer.
Ismael Stella, "Obrzut por parte de mãe", tem 54 anos, 33 deles abrindo e fechando túmulos naquele que foi por décadas um dos cemitérios da colônia polaca. Qual Sérgio, também abraçou o ofício em respeito ao pai, coveiro de carreira, que o queria em um emprego seguro. Poloneses e católicos até a última conta do rosário, obedeceram mesmo preferindo trabalhar à sombra de um balcão de venda.
Hoje, dizem que os velhos tinham razão a dupla já chegou a fazer nove sepultamentos num único dia. Não passa semana sem exumação de cadáver, fora a mão de tinta nos jazigos, préstimo que lhes rende uns extras. Além do mais, estão perto dos Wodzinski, Falarz, Pryzybilovicz, Grzegorzewicz, entre outras gentes que desde o século 19 fazem de Curitiba uma Polska dos trópicos. Explico.
Os descendentes de poloneses frequentam o Orleans o ano inteiro e não apenas nos Finados. Não dão descanso aos mortos. Nem à turma que cuida deles. É de duvidar que em outro cemitério de Curitiba os coveiros sejam chamados pelo nome e perguntados sobre como vão a mulher e os filhos. Só não ganham "até logo". Dá azar.
No mais, a despeito das aparências severas do empreendimento, os funcionários do cemitério desconhecem o que é rotina. Ali podem participar várias vezes ao ano do segundo maior evento eslavo depois do famoso "casamento polonês" o "enterro polonês". "A gente fica com a boca doída de tanto rezar", entregam.
Um sepultamento à moda nunca demora menos de duas horas e pode reunir 300 pessoas, a depender do sobrenome do morto. Tem missa de corpo presente. Elogio fúnebre feito pelos convivas. Sete dias de preces. "O falecido não é esquecido. Continua a fazer parte da capela. Falamos dele como se ainda estivesse aqui", explica o padre Lourenço Biernaski, 83 anos, autoridade em assuntos polônicos. Até o coveiro Marcos Pires de Souza, 47 anos, que não descende da etnia, gosta. "Eu sou normal. Sou brasileiro. Mas acho bonito", avisa.
À parte da cultura dominante, Marcos se revela um observador afiado. É ele quem mostra o "túmulo da mulher viva" um jazigo com lápide e tudo, mesmo estando sua dona vendendo saúde. "Ela está linda na foto. É como quer ser lembrada", observa o operário, com mais um detalhe na ponta da língua: o Orleans já não é mais tão polonês assim.
Com o tempo, terrenos foram vendidos para outros grupos. O sinal de que os tempos mudaram veio no dia em que o trio presenciou a primeira cerimônia do candomblé naquelas terras católicas. "É muito lindo", blasfemam baixinho, para ninguém ouvir, enquanto se atropelam para descrever o ritual em que o caixão é carregado por um cortejo em que todos trajam branco, dando passos para frente e para trás, qual uma dança. Há cânticos e alimentos. Sérgio estava dentro do buraco, preparando a descida do caixão, quando foi atingido por um punhado de canjica.
Riem mais um tanto. Só baixam o farol quando lembram enterro de criança, ai, os mais tristes. E do dia em que Sérgio desatou a chorar nas exéquias de uma velhinha polonesa. Não sabia explicar tantas lágrimas, logo ele, acostumado à proximidade com os mortos. Faz silêncio. Mas nada que umas palavras alegres não possam curar. É da vida.
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