Inútil perguntar ao curitibano Cid Deren Destefani, 78 anos, quando, como e por que fez opção pela fotografia. Ele não faz a mínima ideia. Melhor acreditar trata-se afinal do homem de memória mais afiada das redondezas. "O que faço é mais do que foto. Tenho atração é pela imagem... acho que desde sempre", diz, com a secura habitual, mas dessa vez usando de altíssima precisão, outra de suas marcas registradas.
Bem se lembra. Foi nas aulas de catequese, na Paróquia Santa Terezinha, no Batel, que viu pela primeira vez as gravuras do francês Gustave Doré. Tinha 10 anos e nunca mais foi o mesmo. Enquanto a catequista mostrava à turma a História Sagrada, o guri se perguntava como é que alguém poderia desenhar tão bem. "Nem prestei atenção em Jesus", blasfema, para que não o estranhem.
Por mais curioso que pareça a quem conhece Destefani dono de um repertório de palavrões que bradam os céus , foi ali, na preparação para a Primeira Comunhão, que teve origem a coluna "Nostalgia", publicada há 25 anos na Gazeta do Povo e um dos maiores êxitos editoriais da imprensa paranaense. Cid começou a desenhar depois do impacto das cenas sacras de Doré vindo a ser aluno de ninguém menos do que Guido Viaro. O desenho lhe serviu de passaporte para a fotografia. Adulto, passou não só a fotografar, mas também a colecionar fotos. Hoje, seu acervo ultrapassa 500 mil imagens e figura entre os mais importantes do gênero no país. Há 1.280 domingos ele divide a cada edição da Gazeta uma parte do que reuniu em quase 50 anos de colecionismo.
Amargo?
O episódio do "catecismo" soa engraçado. Cid é tudo, menos um devoto. Quando descobriu as imagens, como conta, já tinha no currículo uma expulsão do grupo escolar, por dirigir à professorinha um impropério proibido para maiores, que dirá para menores. Tinha 8 anos. Foi legítima defesa, garante. Em vez da tradicional palmatória, surraram-lhe com um taco de madeira. Chiou. Ganhou nova rodada e se defendeu com a "boca suja". Ri. E blefa dizendo que o episódio está na origem de seu propalado "gênio forte". Aviso não o chamem de mal-humorado. Ele não gosta. "Encontrei pela vida muita gente que me deixou amargo", devolve.
Mas também encontrou amigos. Cid foi criado na Avenida Batel, 1.202. Conhecia os "bacanas", mas vinha de lar modesto. Sua mãe, Josepha, tinha uma lojinha, a "Moda Josefina". O pai, Amadeu, o Lulo, era sapateiro e notório "contador de causos". Seu balcão tinha tamanha popularidade que recebeu a alcunha de "Academia de Mentira do Batel". Parece "mentira", mas meia Curitiba passava por ali em meados do século passado, de modo que Cid e seu irmão, Luiz Carlos, cresceram em roda de industriais, políticos e capitalistas em geral.
Uma das fontes das muitas histórias da cidade que contaria na página "Nostalgia", a partir de 4 de junho de 1989, vieram dali do balcão. As outras, de parentes e conhecidos tão originais quanto seu Lulo. A tia Elisa Gural, por exemplo, era uma espécie de governanta da aristocrática família Gomm, instalada num casarão estilo Nova Inglaterra, em meio a um belo bosque, no exato local onde hoje está o shopping Pátio Batel.
Os Destefani tinham proximidade também com Chico Serrador, o dono do centro de diversões Coliseu; e com toda a estirpe do Barão do Serro Azul. Jayme Canet era o vizinho da frente. Guido Viaro, um chapa. Os contatos com os historiadores Julio Moreira e David Carneiro completaram o DNA do Cid. "Além do mais, eu girava a cidade. Pegava rabeira de bonde para ver manobra de avião no Bacacheri. Colhi cogumelo na Colônia Argelina."
"Nota dez"
Guido Viaro é personagem de outro episódio curioso nessa biografia. Vizinho de duas irmãs, alunas do pintor, Cid as ajudou num trabalho, "na melhor das intenções". Para Judite, decalcou uma ilustração de Alceu Penna, da revista O Cruzeiro. Para Estela, caprichou no desenho de uma negra lavando roupa na tina. Viaro reconheceu o traço, certificou-se de que a moça morava perto da sapataria e mandou o petardo: "Diga para seu vizinho que ele tirou nota dez". O pintor não escondia seu desapontamento com a escolha do mancebo pela fotografia.
Foi um dos graúdos do Batel que apresentou Destefani à fotografia. Chamava-se Manfredo Schiebler e era seu colega de classe no Colégio Belmiro Cezar. Graças à generosidade do amigo que lhe ensinou tudo e ainda lhe emprestava o material pôde se lançar nas primeiras expedições fotográficas. Foi aos 17 anos, em 1954, durante a Expo Café, no Tarumã. Do alto de seu 1,86 metro, passou a conversa de que era correspondente da revista Guaíra. Seu objetivo: cultivar a arte da reportagem e, como não, se aproximar das vedetes cariocas que vieram para o evento, distintas hóspedes do Hotel Bahia.
"Hoje daria cadeia", conta. Na época, deu quase outra sova com taco de madeira. Ao ser flagrado pela avó, no Centro, em companhia de três desinibidas do teatro rebolado, restou-lhe abaixar a cabeça e pedir "sua bênção, vó". Não ganhou. Logo estaria de malas prontas para servir o Exército no Rio de Janeiro. Era 1955. Ao voltar, dois anos depois, as boas relações lhe garantiriam um emprego público de fiscal do governo. Nem desenhista, nem fotógrafo. Fazia autuações no comércio da Avenida República Argentina e, claro, odiava.
Um bico para a Revista do Rádio, em 1957, deu-lhe a certeza de que estava fora do lugar. O resto veio a jato. Foi exonerado por abandono de emprego, lançando-se à fotografia com apetite. Conta sem timidez: ganhou dinheiro fazendo o que gostava.
Cid não é uma unanimidade há quem não suporte o "gênio forte" e a intransigência com que defende seu acervo. Mas não se pode negar que ele é um dos protagonistas do jornalismo local. Passou pela equipe dos hoje extintos Paraná Esportivo, Correio do Paraná e na bem-sucedida revista Panorama. Frilou na Editora Bloch e na própria Gazeta do Povo, um de seus postos de trabalho na mocidade. Voltou em 1989, ano em que iniciou "Nostalgia".
Mais conhecido pelo acervo valioso, o Cid "das antigas" ainda pede para ser mapeado. Quem o fizer vai encontrar algo mais do que um sujeito de pavio curto, mas o "praça" cativante de um sem número de episódios hilários. Sua passagem pela crônica esportiva é o caso. Poderia ter feito carreira de fotógrafo de futebol, movido, inclusive, pela fúria atleticana. Não fosse terem lhe atirado um meio tijolo na cabeça, num jogo em Ponta Grossa. "Fiquei traumatizado. Nunca mais". Creiam, "Durango Cid" tem fama de bravo, mas prefere mesmo é Gustave Doré.