Em uma rua ampla localizada no coração do “bairro”histórico do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, barões, comendadores e laureados formam uma vizinhança que reitera a importância do ciclo da erva-mate para o Paraná. Entre mármores entalhados e cantarias elaboradas, típicos do final do século XIX, sobressaem pináculos que parecem competir em altura, como se buscassem a conexão entre céu e terra. Tal qual a cidade, a necrópole tem seus bairros e neles sobressaem ilustres nomes da história curitibana e paranaense.
Nomes como Comendador Franco, José Cândido da Silva Muricy, Barão do Serro Azul e Mariano Torres antecedem uma construção singela onde se lê “Vicente M. de Freitas saudades esposa e filhos 7-4-26”. Na foto, Vicente aparece empertigado, trajando terno e com olhar altivo. Seria esse o mesmo olhar que apresentava quando desembarcou junto com seu irmão em um navio negreiro no Rio de Janeiro?
Mas, afinal, quem é esse ex-escravo que figura entre os nomes proeminentes da sociedade curitibana? Vicente está muito mais impregnado na história de Curitiba do que se pode imaginar. Suas mãos se juntaram às de muitos outros escravos na construção da Catedral Basílica Menor de Curitiba, então Igreja Matriz, cuja construção teve início em 1876. Artífice, nome pomposo dado aos operários da época, era escravo do imigrante português José Moreira de Freitas, nome recorrente na construção templos religiosos como a Igreja de Bom Jesus dos Perdões, mas também frequente em obras públicas.
Da trajetória de Vicente poucos documentos sobraram. Muito se recorre ao testemunho de familiares e informações esparsas em jornais. O fato é que esse africano, separado de seu irmão ainda no Rio de Janeiro, construiu literalmente sua trajetória, amealhando o dinheiro necessário para comprar sua alforria. Ainda que a família aponte uma provável relação amistosa com seu senhor, não há apreço que cure a chaga profunda da escravidão. Muitas vezes negligenciada pela historiografia paranaense, os estudos sobre a escravatura retornam para ocupar lentamente seu devido espaço.
Pertencente à Irmandade de São Benedito – que junto com a de Nossa Senhora do Rosário formavam as ordens terceiras dos negros em Curitiba, sediadas na Igreja do Rosário – foi provavelmente durante as atividades como mesário que conheceu Olympia Maria de Assumpção, então rainha da irmandade e futuramente esposa e mãe de seus cinco filhos. Coincidência a presença de um artífice na igreja que recebeu a imagem da padroeira de Curitiba enquanto obras eram executadas na Matriz? A escolha se baseou nas melhores condições do templo em relação aos demais, o que sugere o papel dos escravos como construtores, e certamente, irmãos zelosos com sua igreja.
O que levaria o nome de Vicente às gerações futuras? Ser um escravo letrado? Ter participado da Guarda Nacional e atuado como júri? Seu nome está longe de fazer parte daqueles nominados como responsáveis pela construção de nossa Igreja Matriz. A única parede onde seu nome consta está localizada na Sociedade 13 de Maio e por um bom motivo. Junto com outros ex-escravos, sob os auspícios do também negro e oficial de justiça João Batista Gomes de Sá, fundou o segundo clube negro do Brasil, dez dias antes da Lei Áurea. Há 127 anos Vicente lembra que há muito por se descobrir sobre a escravidão no Paraná.
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