| Foto: Ilustração: Benett

O sanduicheiro feliz

No Natal de 1982, Pedro Primitivo Girardi mo­­rava no Jardim Schaf­fer, em Curitiba, com a mulher, Ivone, e os quatro filhos: Felipe, Gustavo, Marco e Sandro, de 2, 7, 11 e 14 anos, respectivamente. Os meninos tinham o sonho de ganhar uma bicicleta, mas os tempos eram difíceis para Pedro, que trabalhava de copeiro no Restaurante Pote Chopp. O salário mal dava para sustentar os seis. Porém naquele ano ele combinou com a esposa e decidiu fazer uma loucura, presenteando os quatro filhos com uma bicicleta cada um.

Pedro contou o sonho aos patrões Heitor e Benedito Laércio Amatuzzi, que não deixariam por menos. De copeiro foi promovido a sanduicheiro, o que lhe permitiria dobrar os ganhos com as horas-extras e assim comprar os presentes. Fazia de 300 a 400 sanduíches por dia, parte encomendada por lojas que distribuíam aos funcionários. A coqueluche do momento era o recém-lançado X Salada, mas o Sanduíche Pote Chopp também fazia muito sucesso. Pedro começou a trabalhar em dobro e guardar o dinheiro que sobrava.

Finalmente, dia 23 de dezembro comprou as quatro bicicletas nas lojas Hermes Macedo, cada uma proporcional ao tamanho da criança. Só que não dava para perder a magia do Natal, e por is­­so combinou com o vendedor que só as pegaria no dia seguinte. E assim o fez. Dia 24, guardou-as na garagem ao lado do restaurante. Às 20 horas, quando o serviço terminou, levou-as embora de táxi. Para as crianças não as verem, foi direto para a casa do vi­­zinho, Seu Francisco, onde fi­­cariam escondidas até a meia-noite.

Fizeram a preparação da ceia e, por costume, só abriam os presentes na manhã do dia 25. Deu meia-noite e nada de as crianças irem dormir para que ele fosse buscar as bicicletas. Só foram pa­­ra a cama por volta das 3 da ma­­drugada. Pedro foi então até o vi­­­zinho, que já o esperava. Co­­lo­­caram as magrelas em frente do pinheirinho e as enfeitaram com barba-de-bode (gramíneas tiradas às sacoladas no Parque Bari­gui). Exaustos, foram dormir.

Por volta das 7 da manhã, Pe­­dro e Ivone foram despertados com gritos vindos da sala. Hoje, todos adultos, ainda comentam a felicidade daquele dia. "Foi o Natal mais feliz da minha vida, e com certeza deles também", diz Pedro.

Mauri König

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Como eleger o melhor Na­­tal de nossas vidas quando todos foram bons? Embora eles se pareçam nos rituais, há sempre um que marca o resto de nossos dias. O melhor Natal de Maria Lúcia se deu em 1943, aos 8 anos de idade. Essa época sempre foi marcada pelo encontro anual da família, com uma barulhenta reunião de pais, tios, avós e primos, muitos primos. Na véspera, ela foi com os pais dormir na casa do avô José Muniz, ocasião em que todos fo­­ram avisados que o Papai Noel só entregaria os presentes no dia seguinte. Diante de uma plateia de olhinhos curiosos e ansiosos, também um tanto frustrada com a notícia, vovô se viu obrigado a dar alguma explicação.

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— Faz tanto tempo que vocês escreveram as cartinhas que o que pediram está no fundo do trenó. Os pedidos de outras crianças fo­­ram ficando por cima, por isso os de vocês vão atrasar.

Havia certa lógica na explicação, mas como não ficar de­­sapon­­tado? Logo após a ceia, os pe­­que­nos foram mandados para a ca­­ma. Meninos num quarto, meninas no outro. Eram oito: Zezinho, Mazo, Paulo, Beto, Lí­­lia, Julieta, Carmen e Lúcia. Nas cartas para o Papai Noel, unanimidade: to­­dos os meninos queriam bicicleta, todas as meninas queriam bo­­necas. Foi difícil dormir à noite, tendo de represar tanta ansiedade. Como não so­­nhar que o mundo é um grande playground, um enorme paraíso dos brinquedos?

Ainda está escuro quando Ma­­ria Lúcia desperta, impaciente. Primeira a levantar, acorda as primas e começam as confabulações em sussurros. Atentos, os meninos ouvem e num ins­­tante estão todos em pé. Des­cem em caravana a escada, descalços e pela passadeira para não fazer barulho. Entre cochichos e risinhos abafados, atravessam a sala de jantar, que ainda guarda os cheiros da ceia de Natal. Na sa­­la de visitas, sob a árvore, inúmeros presentes. Todos lindamente em­­pacotados. Bicicletas, bolas, caixas de bonecas, todos em embrulhos indisfarçáveis. Cada menina acha que já descobriu a sua boneca. Menos Lúcia.

Só restava aquela caixa enorme, embrulhada em papel grosso e feio. E o peso? Aquilo devia pe­­sar uns 100 quilos. Seguidos pe­­los pais, em cujos olhos brilha a antecipação da alegria dos filhos, Papai Noel entra na sala. As crian­­ças nem desconfiavam, mas era o vovô José. Todos são autorizados a abrir seus presentes. Caixas e embrulhos destroçados revelam bicicletas, trenzinhos, revólveres e pianos, bolas e piões, e bonecas, bonecas, bonecas... Só Lúcia, desapontada, às voltas com uma boneca linda, porém pequenina. Choramingando, reclama:

— Papai Noel, o senhor me esqueceu.

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— Como? — pergunta ele antecipando a cascata de lágrimas prestes a lavar o rosto da menina. Maria Lúcia era a neta predileta desse Avô Noel, sua plateia particular, a única que lhe pedia que declamasse os versos de Guerra Junqueiro e Julio Di­­niz. Era a parceira do vovô, adorava jogar paciência com ele. Fazia essas coisas porque gostava e queria.

— Como? — repete ele.

Pegando-a na mão, leva até a caixa misteriosa. Rapidamente ele desfaz o pacote e o mistério. Surge uma pequena estante de livros, pesada, de madeira escura. Era a embalagem do Thesouro da Juventude, assim mesmo, com um "h" tão mudo quanto ela lembra de ter ficado na hora. Ma­­ria Lúcia fez força para não chorar. Aquele presente lhe abriria as portas do mundo.

Com o tempo as bicicletas dos meninos ficaram pequenas, as meninas ficaram grandes para as bonecas. Mas o Thesouro da Juventude ficou para sempre na vida dela. Sessenta e seis anos depois, nenhum outro presente o superou. Maria Lúcia Almeida Segui ganhou não só uma, mas diversas vocações: formou-se em Biblioteconomia, foi cronista, radialista, atriz amadora, coralista e mais, foi a mãe e a tia com o maior repertório de histórias e casos na família.

"Com o Thesouro da Ju­­ventude, ganhei o mundo em 28 volumes", diz. No terceiro deles, página 881, Maria Lúcia se deparou com a ilustração de uma menina da idade dela contemplando o céu no topo de uma colina, tendo ao fundo nuvens daquelas nas quais se costuma procurar carneirinhos. E, em gramática antiga, este foi o poema que encantou Lúcia aos 8 anos de idade:

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"O mundo era meu e nelle eu reinava

Era tudo meu quanto me cercava

As aves e os peixes que o mar me mostrava

O mundo era meu e nelle eu reinava

Prá mim é que a abelha zunia e voava

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E a ave era minha que ondeando passava"