A coreógrafa alemã Pina Bausch costumava dizer que se interessava muito pouco sobre como as pessoas se movimentavam. Queria era saber das razões que as faziam se mover. A frase, um trocadilho sem truques, é dessas que nos deixam arriados. Depois de ouvi-la, a gente olha para certas figuras e fica se perguntando, qual Pina, o que as move a serem tão generosas e briguentas, pagando alto preço por suas escolhas.
Foi o que perguntei ao generoso e briguento Elias Bonfim, 30 anos, criador do Formação Solidária, pré-vestibular que em uma década atingiu mil pessoas sem um tostão furado para custear os estudos. Pois ele não me respondeu. O que poderia dizer, camaradas? Que a educação muda o mundo? É frase pronta demais para um sujeito que se encaixa em outra dita famosa a cunhada pelo dramaturgo Jean Cocteau: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez..." Eis o homem.
Elias se tornou ativista sem querer. Natural da minúscula Cidade Gaúcha, no Noroeste paranaense, mudou-se para Curitiba aos 17 anos, pobre de Marré desci. Não começou muito bem: arrumou serviço na obra e foi parar numa das mais desalinhadas dentre as 250 e tantas favelas da região, a úmida Vila Pantanal. Na vila, a terra é turfa, mole, uma experiência extrassensorial. Parece a Lua. O pé afunda atrapalhando qualquer plano de fuga diante da perseguição anunciada de gansos e porcos que escapam dos banhados.
Mas o jovem Elias nem tchum para o exotismo pantaneiro. Queria curtir. Por isso se alistou num programa de inclusão digital da UFPR. Sentiu-se tão à vontade que mal se deu conta e já estava no meio do lufa-lufa, de porta em porta, dando de dedo na moçada para saber por que faltara à aula. Nascia o líder. Em poucos meses, batia em outras portas a de professores interessados em trabalhar num curso para quem nem em sonhos estudaria no Positivo. Convenceu sete homens bons a atender a gurizada, de graça, incluindo aos sábados.
No primeiro ano do cursinho, Elias aprovou uma alma no vestibular o Adílson, moedinha da sorte. Quis mais. Os índices do Formação Solidária se tornaram tão alvissareiros que seu idealizador poderia apresentá-los numa daquelas conferências show feitas pelo Mark Zuckerberg. O gráfico vai subindo, subindo, até chegar a 75 professores envolvidos, 240 alunos, média de 30 aprovados/ano nas faculdades públicas e o triplo disso nas particulares.
Segredo? As parcerias com gente de boa vontade, como o professor Luiz Carlos Machado. E o contrato férreo que os alunos assinam, para que não façam do pré-vestibular um apêndice de suas vidas. Do contrário, a porta da rua é a serventia da casa. "Temos estatuto, oras...", confidencia, com o sorriso de 40 e tantos dentes, para surpresa dos que tremem as pernas só de vê-lo entrar na sala de aula para dar um reles aviso.
"Me chamam de grosso, eu sei...", admite. Mas não estranhem ele se parece com uns tantos humanistas de carne e osso que já conheci. Uma colega minha, certa feita, espantou-se com a rudeza de uma senhora, verdadeira santa, que cozinhava para os moradores de rua de Curitiba. Esperava-a cândida, espargindo mel, mas se não tivesse a zanga de um general não conseguiria garantir arroz e feijão no prato de tanta gente.
Algo parecido conta Otávio Frias Filho no excelente livro Queda livre, ao tratar de sua convivência com a turma de um Centro de Valorização da Vida, o CVV. Podia jurar que encontraria lá conselheiros de voz mansa, recitando poemas para demover suicidas de pular da janela. Encontrou voluntários dotados da frieza de cirurgiões diante de bipes apitando. Tenho para mim que Elias é desses que prendem a emoção na focinheira. Do contrário, não chegariam a lugar nenhum.
Em tempo Elias ajudou a formar tanta gente, mas ainda não pegou seu canudo. Ele é um veterano do curso de Relações Públicas. Jura que vai terminá-lo, mesmo com seu histórico de mensalidades negociadas nas tesourarias. Os amigos prometem festa de arromba. Tenho para mim que nesse dia o idealizador do Formação Solidária há de permitir algum capricho ao coração. É de direito dos que se movem.
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