| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

Na mesma semana em que atentados deixavam Paris, cidade onde mora com a família, em estado de choque, o fotógrafo Sebastião Salgado viu um outro tipo de terror atentar contra o vale de sua infância e as águas que o banham: uma explosão de lama, que já vitimara moradores de Mariana, matava o Rio Doce. Da China, onde estava, viajou 44 horas até o Espírito Santo para reencontrar o rio pouco antes de seu oxigênio extinguir-se de vez. Homem de ação, venceu o luto: encontrou-se com as empresas, os governadores dos dois estados atingidos, a ministra do Meio Ambiente e a presidente Dilma Rousseff e apresentou uma proposta para recuperar o rio, que envolve recursos da ordem de R$ 100 bilhões. Parece muito diante das multas aplicadas (que vão para os cofres públicos) e da verba emergencial, mas é um plano realista quanto a padrões de desastres semelhantes no resto do mundo, e considerando os recursos de que a Vale e a Samarco dispõem. Segundo Sebastião, as gigantes do minério estão dispostas a arcar com o custo. O problema estaria na destinação: como impedir que o dinheiro vá parar no remoinho do sistema ético-político que, como a lama, tudo digere e nada recicla? Nesta entrevista, pistas para a salvação e o testemunho da peregrinação do fotógrafo pelas áreas atingidas.

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Quais as últimas notícias de sua peregrinação pelo Rio Doce?

As notícias são péssimas. Hoje vim descendo até Colatina, Espírito Santo. Antes, passei por um distrito, Itapina, onde o rio estava morto. Continuei descendo, mais veloz que as águas, e quando cheguei a Colatina, ainda estava lindo, como sempre. Foi a última vez que eu vi o rio vivo. Fui embora e agora sei que morreu.

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Você presenciou os estertores?

Olha, é um rio morto, mas morto de uma maneira que é morto mesmo. Tenho um amigo fotógrafo de natureza que estava em Governador Valadares e fotografou uns camarõezinhos fugindo do rio e entrando na terra, para morrer, porque morrer no rio não fazia sentido, não era mais o seu lugar. E umas ostras pequenas, que saíam da água, subiam na pedra (elas têm umas patinhas), mas a pedra estava muito quente. Então voltavam para a água e para a pedra de novo, onde acabavam morrendo. Uma agonia que a gente não consegue descrever. Nunca vi tanto peixe grande morto. Como é um rio nacional, de grandes dimensões, largo, tem peixes imensos. Muitos eu nem sabia que existiam. Ninguém sabia. Agora que o rio morreu, a gente passa a conhecê-los...

Conhecê-los mortos... um paradoxo assustador...

Eram peixes de profundidade, habitavam um departamento do rio que ninguém conhecia. Não se deixavam pescar, se protegiam, tinham outra função. Tudo morreu. Agora o rio é uma calha estéril cheia de lama. Uma hora vai decantar, começar a correr, mas sem vida. A vida futura em forma de ovos, plantinhas — está tudo sendo quase que asfaltado. E é a partir daí é que começa a acontecer a coisa mais terrível.

A ameaça à vida das pessoas?

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São 230 municipalidades no Rio Doce. Compostas, cada uma, de dezenas de aglomerações urbanas. Pouquíssimas dentre estas cidades têm estações de tratamento, mas o rio normalmente digeria os rejeitos. Agora, vai passar a ser um caudal infinito de bactérias, impossibilitando a ressurreição. Como você vai tratar essas bactérias para consumo humano? Como é que o gado vai beber só bactéria? E a agricultura de irrigação, típica das suas margens? É um desastre difícil de avaliar. São décadas, de 20 a 30 anos para recuperar.

O que é necessário para que essa recuperação seja possível?

Para o rio volar a viver é preciso construir sistemas de tratamento de esgoto em todas as cidades para evitar que rejeitos de toda natureza cheguem às águas. E construir também um sistema de matas ciliares para fazer o filtro na beirada de todos os córregos e dos pequenos rios. Falo também dos rejeitos químicos naturais: é um rio extremamente mineral, que não tem mais cobertura vegetal. O Vale é lavado pela chuva, com toda essa concentração de minas. Teremos que criar a mata.

Quem financiaria uma recuperação deste vulto?

As empresas. Através de um fundo, nos termos em que propus nos últimos dias. Estive com os governadores do Espírito Santo e de Minas, e com a presidente Dilma, que é extremamente favorável. As empresas são responsáveis. Não digo só no sentido de serem responsáveis pelo acidente, que em parte são, mas sabem de suas responsabilidades. Tenho certeza de que vão assumir a catástrofe.

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Considerando que elas de fato assumam, de que quantia falamos? Não são as multas nem aquele R$ 1 bilhão que a Samarco ofereceu...

R$ 1 bilhão? Pelo menos cem vezes isso! Falamos de R$ 100 bilhões. As multas? Essas vão para os cofres públicos para pagar despesas. Veja, a British Petroleum, por aquele desastre em 2005 no Golfo do México — um dano muitíssimo menor —, pagou US$ 20 bilhões para uma limpeza que durou uns dois anos. No caso do rio Doce, são décadas. As empresas estão de acordo, a presidente está de acordo. Tudo tem que ser estudado pelos órgãos competentes e pelos especialistas. Será um fundo compensatório de recriação e regulação do Vale. Para recuperar uma bacia tão grande quanto Portugal. A Suíça é menor que o Vale do Rio Doce.

De onde vem sua certeza de que as empresas vão arcar com tal valor?

Elas têm condições de arcar e vão arcar. A anglo-australiana BHP é a maior do mundo. A Vale é a segunda. Vão arcar porque têm que proteger suas imagens, têm compromissos com sustentabilidade, se esforçam para serem limpas, apesar de serem mineradoras. O problema maior não é esse.

Se pagarem, qual seria o problema?

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Saber se esse fundo vai ser aplicado em seu destino: o Rio Doce. O dinheiro não pode se transformar em pequena praça pública para campanha de prefeito, não pode se converter em camisetas de grupamentos políticos, e não em natureza refeita. Temos que saber como esse fundo vai ser gerido.

A proposta apresentada traz uma ideia nesse sentido?

Uma vez criado o fundo, penso que é preciso que seja depositado no BNDES, uma entidade nacional. Como ocorre com o Fundo Amazônia, que é bem gerido através deste banco. Uma vez aprovado o fundo, minha preocupação maior, meu maior medo, é realmente o que o sistema ético-político pode fazer com esse dinheiro. A Dilma acha que tem que fazer (o fundo). É a fiel da balança. Como já disse, falei com governadores, a ministra do Meio Ambiente, empresas. Mas não sou um salvador da pátria. Eu sou um homem do Vale, que dirige a única organização da região com um projeto de replantio e recuperação das nascentes, uma das variáveis, não a única, que tem que ser reconstituída.

Um problema, por sinal, bem anterior à tragédia.

Sim, e para a qual nosso instituto tem um projeto em curso, o Olhos d’Água, de recuperar todas as nascentes. Se ele era importante, agora se torna vital. O rio já havia diminuído brutalmente antes do desastre. Agora, a água é essencial para lavar a calha (isto é, o rio). Só esse projeto precisa de R$ 3 bilhões, a custos de hoje, atualizados ano a ano, para recuperar 377 mil nascentes. Já recuperamos mil delas, ou seja, o piloto está pronto, o projeto entrou no BNDES aprovado, mas não tem, por causa do contingenciamento, o dinheiro a fundo perdido necessário. Infelizmente, foi eliminado.

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As nascentes não foram atingidas pela lama?

Não, e isso é uma grande oportunidade. É o vale mais detonado do Brasil. Só tem 0,5% de cobertura florestal. As nascentes já estavam todas morrendo. Mas é delas que virá a fonte da salvação.

Por que aconteceu este desastre?

Eu não tenho como explicar, nem cabe a mim. Há mais de 765 barragens como esta em Minas Gerais. Um acidente pode acontecer. E outros podem vir. Você tem um carro? Tenho certeza quase absoluta de que ele saiu de uma dessas minas. A sociedade de consumo em que vivemos faz com que tenhamos minas, com que tenhamos exploração de petróleo. As pessoas gritam porque polui, mas têm seus carros. Mas quem polui mesmo somos nós, é o nosso modo de vida. É este modelo que temos que questionar.

Mas não houve exploração em excesso, má fiscalização?

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Qualquer coisa que se diga agora é um tiro no escuro. Todas essas minas são feitas para garantir o conforto no qual optamos por viver. As empresas fazem parte de tudo isso. E somos coproprietários às vezes sem saber. Você tem um pouquinho mais de dinheiro, seu gerente vai dizer: “Eu te compro umas ações”. Se você examinar que ações são essas, a Vale e a Samarco estão lá.

Como e quando você soube da tragédia no rio Doce?

Eu estava na China, participando de um encontro da Associação Nacional de Fotógrafos Chineses no interior do país, com 1.200 profissionais. Soube com 12 horas de atraso. Eu já viria ao Brasil, tinha compromissos aqui. Cheguei no dia 10, como planejado, depois de 44 horas de viagem, e no mesmo dia já encontrei o governador do Espírito Santo.

E, três dias depois, explodiam os atentados em Paris, sua residência principal. Em duas semanas, duas tragédias, na sua terra de origem e na sua terra de moradia.

E o atentado foi a 150 metros da nossa casa. Lélia, minha mulher, coitadinha, ficou em estado de choque total. Nossa rua foi bloqueada. Metralhadoras. Só entrava com identidade. A antiga redação do “Charlie Hebdo” também fica pertinho de lá. A gente passa duas vezes por dia pelos bares e restaurantes alvejados. E vamos sempre comer alguma coisa no Petit Cambodge. É a vida. Vamos em frente.

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Como foi, depois de chegar ao Brasil, seu primeiro reencontro com o rio?

Foi dramático. No território dos índios krenak, um pouco acima da nossa cidade, Aimorés. Um choque brutal. A água que corria não era água. Era um gel. Um gel sem oxigênio. Morto. Por isto estamos clamando para que o fundo seja criado e gerido com responsabilidade. Que não sirva de base para politicagem. E que a população que perdeu o rio, a qualidade de vida, seu manancial, sua pesca, seja o destino de toda a energia. Chamo a atenção mas não tenho poder político. Somos uma pequena ONG que tenta ser referência em valores éticos. Mas tenho medo.