O mar revolto de pés e cabeças não para de escoar para fora do trem. Há jovens e senhores, empregados e biscateiros. Uma onda humana de pedreiros, porteiros, diaristas e também bancários, advogados, estudantes. Em comum, a pressa dos atrasados e as pedras do caminho. Deixaram o subúrbio ou a Baixada Fluminense antes da alvorada. Viajaram em pé, colados a outros corpos, por até duas horas. Chacoalharam a uma velocidade média de 42km/h. Quando a multidão invade o saguão da Central do Brasil, já cheia de cansaço, ecoa nos alto-falantes o sax de Pixinguinha. São 6h20m, mal clareou. “Eita, segunda-feira!”, exclama um sonolento atendente da lanchonete Central Rio, onde dois mil pastéis serão vendidos até o anoitecer.
Todos os dias, 670 mil pessoas embarcam em uma das 102 estações espalhadas pelos oito ramais da Região Metropolitana. É a população de uma metrópole, maior do que a de Niterói. Apenas 20 municípios brasileiros, do total de 5.561, têm população superior. O prefeito dessa cidade é a empresa SuperVia, que tem mandato até 2048, tempo da concessão mais longa do estado. Os 270 quilômetros de linhas férreas conectam o coração do Rio a 11 cidades vizinhas. Da Central ao ponto mais distante, a estação de Guapimirim, são 76 quilômetros. A SuperVia tem nas mãos um mundo, mas também um vasto submundo. Só quem viaja nos trilhos é capaz de acreditar nas coisas que se passam nos vagões e plataformas. Coisas como um trem avançar sobre um cadáver, autorizado pelo comando da companhia, como ocorreu no dia 28 de julho com o ambulante Adílio Cabral dos Santos. Ex-presidiário de 33 anos, ele tentava reconstruir a vida vendendo balas na linha férrea.
Uma equipe do GLOBO passou as últimas três semanas viajando nos ramais da SuperVia. Cada uma das linhas foi percorrida de ponta a ponta, quase sempre em horário de rush. Logo no primeiro dia, um menor roubou o celular de uma passageira ao lado dos repórteres, enquanto o trem estava parado, com as portas abertas, na estação terminal de Belford Roxo - apenas “Bel”, para os íntimos. Da plataforma, ele esticou o braço com agilidade e, pela janela do vagão, arrancou o aparelho do ouvido da mulher, sumindo na escuridão. Eram cerca de 20h30m, a estação estava às moscas. O garoto, de 15 anos no máximo, vestia a camisa 10 da seleção brasileira. Um a zero para ele.
Nesse ramal, circula a maior parte dos trens antigos. São 201 em toda a malha ferroviária, sendo 121 novos, fabricados na China ou na Coreia do Sul, e 80 velhos, das décadas de 50 a 80 - do tempo em que a pernambucana Marinês, a rainha do xaxado, fazia sucesso cantando os problemas dos trilhos em “Trem da Central” (“Vou a pé, de Sputnik, mas não vou de trem”). Antes de 2011, quando a Odebrecht assumiu a SuperVia, as avarias nas composições ocorriam a cada 23 mil quilômetros. Hoje, elas circulam 180 mil quilômetros sem apresentar falhas. Mas é irritante o número de vezes em que os trens, velhos ou novos, ficam parados entre uma estação e outra. Os passageiros passam longos minutos esperando, sem informação. Em um dos trajetos, da estação de Japeri até a Central, a composição fica dez minutos parada. Duas passageiras começam a discutir por um assento.
- Olha o coração, irmã - diz um homem, tentando acalmar os ânimos.
Uma delas berra que está grávida e passando mal. O vagão fica em silêncio, a mulher ganha o lugar. Poucos respeitam os assentos reservados para idosos, gestantes e pessoas com deficiência - estas, aliás, são as que mais sofrem, pois as condições de acessibilidade das estações não são muito melhores que as da Floresta Amazônica. É comum a cena de cadeirantes sendo carregados nos braços por passageiros - inclusive para entrar nos trens novos, pois há um desnível de um palmo entre a altura deles e a das plataformas.
Acostumada a lidar com os problemas da SuperVia, a defensora pública Patrícia Cardoso, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor, conseguiu quarta-feira um acordo de indenização entre a empresa e a família de Adílio - seus parentes vivem no Morro da Serrinha, em Madureira. Para a defensora, não há desculpas para a falta de segurança no interior da malha ferroviária.
- As pessoas que andam de trem são invisíveis. Ninguém se preocupa com elas - afirma Patricia. - Há um grande ressentimento dos usuários com a SuperVia. Eles se sentem maltratados, e são mesmo. O transporte já não é confortável. Mas ele tem que ser, pelo menos, seguro.
É possível medir a insatisfação dos passageiros pelo número de denúncias feitas à agência reguladora do setor, a Agetransp. De janeiro de 2014 até julho, foram 2.745 registros. Eles podem se transformar em penalidades. Desde 1998, quando o estado licitou a gestão dos trilhos, já são 56 multas - barcas e metrô, no mesmo período, receberam juntos 28. As punições da SuperVia somam R$ 8,6 milhões, dos quais foram pagos R$ 3,5 milhões. É difícil para a Procuradoria Geral do Estado cobrar da concessionária. Do valor ainda não pago, R$ 2,9 milhões já estão inscritos na Dívida Ativa. O estado tenta receber na Justiça o valor. Segundo o TJ, a empresa responde a 4.036 processos - 795 abertos só este ano.
Havia um batalhão com 400 policiais que cuidava da segurança das linhas férreas, mas em 2009 ele foi extinto, e hoje 90 PMs policiam esse mundo de gente, trilhos e dormentes - um para cada grupo de 7.444 pessoas. Sem se identificar, um deles diz que as condições de trabalho são terríveis. Há poucos meses, ele e uma equipe foram recebidos a tiros por traficantes na estação de Del Castilho, onde uma favela cresce sem controle à beira dos trilhos.
Com efetivo tão baixo, o submundo impera nos caminhos de ferro. Ao atravessar algumas estações, como Cavalcanti, é preciso fechar as janelas do vagão, pois é comum os trens serem apedrejados. No banheiro masculino da plataforma da Central, quem manda são os travestis e homossexuais que se prostituem ali, onde se paga R$ 1,75 para entrar. Eles ficam em pé sobre os vasos sanitários, com as portas das cabines fechadas, à espera dos clientes. “Vem, amor”, chama um homem de cabeça e sobrancelhas raspadas. O banheiro fica a cinco metros da sala da PM.
Culto, samba nos vagões e “alegria de pobre”
Cada vagão é um mundo. Cada viagem, uma surpresa. As paisagens que as janelas descortinam, qualquer que seja o destino, são de um Rio que ficou para trás. Favelas em sequência, terrenos baldios, edifícios invadidos. O tráfico de drogas é livre em várias estações, principalmente nos ramais de Belford Roxo e Santa Cruz. Em diversos pontos, pessoas usam crack como se estivessem fumando cigarro. Um cachorro triste caminha sozinho na plataforma de Jardim Primavera, ramal Saracuruna. No vagão cheio, um cego passa pedindo esmola. O velho sabe usar as palavras.
— Olhem para mim, já que não posso olhar para vocês. Só peço aquilo que seu coração achar que eu mereço. E que não for fazer falta — diz, sacolejando o boné cheio de moedas.
Cansada do trabalho ou da noite maldormida, a maioria pega no sono, mas dormir em pé é uma arte para poucos. Num trem de Santa Cruz para a Central, o enfermeiro Jaime Queiroz, morador de Paciência, está com fones nos ouvidos. A trilha sonora: pássaros brasileiros. Qual seu preferido, Jaime?
— O uirapuru. Minha avó o imitava perfeitamente. Vou daqui até a Central pensando na vida.
Trabalhar nos trilhos do Rio é uma batalha. Como a atividade de ambulante não é regular, os trabalhadores se organizam como podem. Há um acordo entre eles que quase todos respeitam: cada um trabalha em um ramal. Os preços também são combinados. Uma vendedora de doces, no ramal de Belford Roxo, foi ameaçada por outro ambulante na frente da equipe do GLOBO. Motivo: já no fim do expediente, com vontade de ir embora, oferecia balas Halls a R$ 0,60 a unidade.
— Estão até me ameaçando de morte, mas não estou maluca: agora são duas por R$ 1 e R$ 0,50 a unidade — disse.
Vende-se de tudo nos trens. Escovas de dente Colgate: quem levar três, paga duas. Bananadas de Guapimirim — “não tem na Central, não tem em Madureira, é lá da fazenda do meu pai”, anuncia o vendedor — saem a R$ 0,50. Lanternas descartáveis da China são vendidas por R$ 2, e é impressionante a velocidade com que saem. A novidade é uma máquina de cortar vidros e azulejos. Custa R$ 15.
Fomos para a estação de Japeri às 5h em busca dos cultos evangélicos, proibidos desde 2007, mas ainda presentes nos vagões do primeiro horário. A estação centenária do antigo terminal está entregue aos cupins. Qualquer dia virá abaixo. Entramos no terceiro vagão. Perto da estação de Santíssimo, a cantoria começa baixinho: “Glória, glória, aleluia, glória, glória, aleluia”. Um sujeito prega com o coração: “O homem é burro, irmãos. Eu sou burro. A gente deixa uma mulher bonita em casa para ficar com outra menos formosa na rua. Eu sei do que estou falando, já estive nesse lugar”.
Já na Central, diz:
— Pessoas chegam chorando, no fim da viagem, dizendo que iam matar, roubar, mas mudaram de ideia. Peço desculpas a quem não gosta, mas não posso parar.
O sucateamento contínuo do sistema ferroviário, inaugurado em 1858, fez o transporte ser abandonado. Houve um tempo em que havia um milhão de passageiros por dia. Em 2000, eram apenas 150 mil. Quando a Odebrecht assumiu a concessão, em 2011, já eram 400 mil. E o número vai subindo: quarta-feira passada, 688 mil usuários rodaram as roletas.
— Nosso desafio é recuperar cinco décadas em cinco anos — resume o presidente da SuperVia, Carlos José Cunha, quase citando Kubitschek.
Secretário: “O sistema foi sucateado”
O secretário estadual de Transportes, Carlos Roberto Osorio, afirma não estar satisfeito com o serviço da concessionária. “Mas temos que reconhecer que o serviço evoluiu”, ressalta:
— O sistema ferroviário é muito extenso e foi sucateado criminosamente. Está sendo reconstruído, é um processo. De todos os modais de transporte, nenhum tem crescido tanto.
Sobre os problemas de segurança, a SuperVia diz que aumentou de 200 para 623 o número de câmeras. Serão mil em 2016. Governo e empresa afirmam que está em execução um plano de investimentos de R$ 3,3 bilhões. Todas as estações serão reformadas até 2020. Os trens velhos sairão de circulação ano que vem, promete a empresa.
Mas o próprio Osorio afirma:
— A SuperVia avançou na qualidade técnica e operacional do sistema. Agora precisa aprender a servir, adquirir a cultura do serviço.
Enquanto esse dia não chega, o povo balança. E também aproveita as brechas na vigilância. Toda sexta, no fim do dia, sambistas tocam nos trens rumo a Japeri e Santa Cruz enquanto voltam para casa. Todos bebem, fumam e cantam, seja o trem brasileiro, chinês ou coreano. Perto de Madureira, os sambistas entoam Paulinho da Viola. Emocionado, um homem nos abraça.
— Sabe o que é isso? Alegria de pobre!
Vai durar até o despertador tocar, na madrugada de segunda-feira, quando o trem chamar de volta seus trabalhadores.