A Lava Jato chega nesta sexta-feira (17) ao terceiro aniversário desde a deflagração com a cobrança clara por reformas na legislação brasileira que possam auxiliar no combate efetivo à corrupção. Para o coordenador da força-tarefa em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, esta é “a grande chance de alcançarmos alguma transformação” no país nesse sentido. “Depois de um imenso escândalo de corrupção que quebra todos os parâmetros, todo o resto vai parecer pequeno e não vai ser capaz de levantar energia para as reformas necessárias”, disse o procurador em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo. Acompanhe:
A Operação Lava Jato acaba de completar três anos. Qual o balanço que o senhor faz da operação até aqui em relação aos crimes descobertos?
A investigação começou com um esquema de lavagem de dinheiro, relacionada a crimes financeiros praticada por Youssef e outros doleiros, evoluiu para a corrupção na Petrobras, transbordou a Petrobras indo para a Eletronuclear, Ministério da Saúde, Caixa Econômica Federal, Ministério do Planejamento, e hoje tem a perspectiva de evoluir para dezenas de outros órgãos públicos federais e estaduais com a delação da Odebrecht.
Foram detectadas fraudes a licitações, cartel e corrupção em relação a diversos contratos de obras públicas em inúmeros órgãos, corrupção para liberação de recursos de empréstimos, corrupção para influenciar na aprovação de leis e normas, se descobriu ainda o pagamento de subornos para contratação de empresas de marketing, para contratação de empresas de mão de obra terceirizada e ainda para obstruir trabalhos de investigação em Comissões Parlamentares de Inquérito. O seja, existe uma gama bastante variada de tipos de corrupção que foram praticados e descobertos.
Desde que a Lava Jato começou a chegar a figuras importantes existe preocupação da classe política e de grandes empresários para tentar pôr freios na investigação. O que pode efetivamente atrapalhar a operação?
As duas maiores pedras que foram colocadas no nosso caminho foram a tentativa de aprovação da anistia ao caixa dois, que na verdade era uma anistia a corrupção, e a aprovação na Câmara e encaminhamento ao Senado do projeto de lei de intimidação, que objetivava cercear a atividade de membros do Ministério Público e do Judiciário.
Isso nos preocupa ainda mais quando vemos o que aconteceu na Itália, onde houve uma substituição de pautas de reforma por uma pauta de discussão de alegados abusos e excessos praticados no Judiciário e no Ministério Público. Ou seja, ao invés da Itália passar por reformas, eles [investigados] conseguiram substituir por uma pauta de contenção do trabalho da Justiça na apuração e processamento de crimes graves.
Preocupa que no Brasil se siga o mesmo caminho?
Preocupa, porque essa é a nossa grande chance de alcançarmos alguma transformação. E se ela não for alcançada a gente não vai ter mudanças nos próximos 20, 30 anos, porque depois de um imenso escândalo de corrupção que quebra todos os parâmetros, todo o resto vai parecer pequeno e não vai ser capaz de levantar energia para as reformas necessárias, ainda mais se a população se frustrar por essas reformas não terem sido feitas nesse momento. A gente não pode cometer o mesmo erro da Itália, que foi colocar excessivamente as esperanças no Judiciário. As esperanças de transformação não estão na Justiça, e sim na população e no Congresso.
Temos hoje uma discussão de reforma política no Congresso. O que o senhor destacaria como importante nessa reforma para evitar futuros casos de corrupção?
É preciso diminuir os inventivos a corrupção. O primeiro ponto que eu destacaria para reduzir esse incentivo é diminuir os custos das campanhas eleitorais. Hoje as campanhas são individuais e não de partidos, o significa que pessoas dentro do mesmo partido concorrem entre si, e em campanhas para deputado ou senador, o distrito em que a pessoa concorre é todo um estado e isso significa gastos por todo o estado. O número de candidatos também é bastante expressivo. Nas ultimas eleições foram mais de 500 mil candidatos. Isso faz com que a soma exigida para que um candidato desponte seja muito expressiva, e gera uma demanda por recursos que acabam angariados por meio de funções públicas relevantes de diversos órgãos públicos. Além da diminuição de custos da campanha eleitoral, precisamos ter um sistema em que seja viável a fiscalização dos candidatos. Hoje com mais de 500 mil candidatos em uma eleição e esse número torna qualquer fiscalização inefetiva.
Além disso, empresas, quando ganham obras, precisam que essas obras sejam inseridas no projeto da Lei Orçamentaria Anual (LOA), e se obra se estender por mais de um ano, esse projeto deve ser inserido a cada ano nessa lei orçamentaria, não existe uma reserva de fundos para a construção daquela obra até o final. Isso faz com que aquela empresa precise do Parlamento se ela quer que essas obras não sejam paralisadas, gerando incentivo para que essas empresas desenvolvam, como a Odebrecht desenvolveu, uma bancada própria no Congresso, o que abre espaço para relação promiscua de financiamento em troca de apoio e ajuda, o que é um modo disfarçado de corrupção.
Além disso, nosso orçamento é autorizativo, ainda que a empresa consiga que um projeto seja inserido no orçamento, ele vai para o Ministério do Planejamento, e a empresa precisa de decisões somadas no Ministério do Planejamento, do Ministério da Fazenda, para que os recursos não sejam contingenciados, para que as rubricas não sejam completamente suprimidas. Ou seja, a empresa precisa de decisões e de influência nesses ministérios, precisa de um bom relacionamento, o que novamente vai se traduzir em pedidos de doações que têm por contrapartida as decisões favoráveis a empresa nesse âmbito. Tudo isso gera um amplo sistema de incentivo à promiscuidade na relação entre o poder político e o poder econômico. Nós precisamos de reformas que ataquem esses incentivos e tornem o sistema político menos propício a podridão.
A que o senhor atribuiu o engajamento da sociedade em defesa da Lava Jato? O que há de diferente do mensalão, por exemplo, que leva agora milhões de pessoas às ruas?
O mensalão tratava de milhões, a Lava Jato trata de bilhões. O mensalão tratava de dezenas de pessoas, a Lava Jato trata de centenas de pessoas. O mensalão tratava de contratos em alguns órgãos, em alguns espaços em que houve prática de ilícitos, na Lava Jato a corrupção é sistêmica, enraizada, histórica, ela vem de décadas atrás e está espalhada em diversos órgãos públicos.
Se você vai ao médico e ele fala que você tem uma gripe o teu nível de preocupação é um. Se você vai a um médico e ele diz que você tem um tumor e esse tumor está espalhado, teu nível de preocupação é outro. O que a Lava Jato fez foi trazer um problema muito grave a tona, foi fazer um diagnóstico de uma doença extremamente perniciosa para o país e isso naturalmente gera uma reação da sociedade muito maior. O que não pode acontecer é que a sociedade se acostume com esse mal, que a sociedade se dessensibilize com o passar do tempo e deixe de exigir, de pedir, de clamar pelas reformas necessárias para que esse tipo de situação pare de existir.
A transparência em relação às investigações também contribui para essa indignação?
Com certeza, existe uma vantagem na transparência. Como disse um juiz norte-americano, a luz do sol é o melhor desinfetante. A transparência contribui com esse cenário, sem dúvidas. Um cuidado que devemos ter é não nos perdermos nas árvores e perder de foco a floresta. Mais do que processar casos específicos de corrupção, nós precisamos ver o sistema. O sistema não funciona e a gente precisa consertar esse sistema. Se a gente se perder nas árvores o que a gente vai ter eventualmente, se a gente tiver sucesso, é a punição de algumas pessoas que praticaram crimes, é a recuperação de algum dinheiro desviado, mas esses desvios vão continuar acontecendo por debaixo dos panos, como aconteceu depois do mensalão. No mensalão as pessoas acharam que ia mudar tudo, e não foi o que aconteceu.
Para fazer essa reforma, precisa do Congresso. Como conscientizar a sociedade disso em ano de eleição, como isso pode influenciar 2018?
A imprensa e os formadores de opinião têm um papel essencial nisso. Algumas pessoas dizem que o Congresso que está aí não vai conseguir fazer as reformas. Mas nós precisamos lembrar que quem decide quem está no Congresso é a sociedade. Ano que vem existem eleições e pelo voto a sociedade pode escolher que quem estará no Congresso serão pessoas comprometidas com a pauta anticorrupção.
Nesses três anos, o senhor destacaria algum erro estratégico da força-tarefa?
Tudo que é feito pode ser feito melhor ou pior do que foi feito. Uma petição que é feita em uma página ou em duas páginas poderia ser feita em mil páginas. Tudo é uma questão de dimensionar recursos humanos, materiais, de acordo com as tarefas, de acordo com a eficiência, de acordo com a probabilidade de resultado e de quanto você precisa investir naquela tarefa. Agora, o nosso critério é, sobretudo, não esse, mas a lei. Se tudo que nós fizemos foi legal, foi regular, segue uma interpretação razoável da lei e da Constituição. Nesse sentido eu posso dizer que todas as decisões nossas foram tomadas em todos os momentos estritamente para seguir a lei, a Constituição e as regras. A lei, é claro, admite divergências, admite discordâncias, admite diversas interpretações, agora, todas as decisões foram tomadas com base em interpretações razoáveis da Constituição e das leis brasileiras.
Qual a expectativa da Lava Jato para os próximos anos?
A minha maior expectativa pessoal é que isso resulte em reformas. O caso já produziu resultados maiores que qualquer outro caso na história. A grande diferença que podemos ter no futuro são reformas que façam com que as pessoas sejam punidas, não só na Lava Jato, mas também nos outros 97% dos casos que produzem hoje impunidade. As prisões servem para estancar crimes em andamento, mas elas não produzem por si só as transformações dos incentivos, a redução dos incentivos no sistema político à corrupção.