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Perfil: a escrivã que registra todos os suicídios de Curitiba

 | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
(Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo)

Maristela Duenhas não é de poupar sorrisos. A mulher loira, bem-humorada e otimista tem um ar suave e sereno, que se nota de imediato. Pode-se dizer que ela se enquadra naquela categoria de pessoas com “energia boa”. À primeira vista, as qualidades parecem contrastar com a peculiaridade de seu ofício: ela é escrivã do cartório de suicídios da Delegacia de Proteção à Pessoa (DPP) de Curitiba. Desde que o cartório foi criado há oito anos, ela é a responsável por registrar todos os casos de pessoas que tiraram a própria vida na capital paranaense.

De lá pra cá, mais de 800 ocorrências já foram documentadas pelas mãos de Maristela. Visto de fora, o serviço parece ser dos mais pesados: entre outros atos, cabe a ela ouvir e registrar o depoimento dos familiares e amigos mais próximos de cada pessoa que se suicidou. Em média, são seis oitivas por caso. Assim como laudos periciais, os relatos integram o inquérito policial, que tem por objetivo confirmar (ou não) que a ocorrência em questão se trata de um suicídio e que não houve ajuda ou incentivo de outras pessoas – o que é crime.

“As famílias vêm estraçalhadas pra cá. Eles nunca aceitam, tentam entender, se culpam ou tentam achar um culpado. Talvez seja o pior tipo de sofrimento”, disse. Até por isso, Maristela procura acolher “de forma mais humana” os familiares ou amigos das vítimas. Sabe que a cada depoimento eles revivem a dor da perda. Experimentada, desenvolveu algumas técnicas para os momentos em que o sofrimento se faz mais evidente. Um copo de água, uma palavra de consolo e ouvir pacientemente sempre ajudam.

“A primeira coisa que faço, é tentar aliviar o sentimento de culpa com que eles chegam aqui. A maioria acha que poderia ter evitado [o suicídio do familiar] se tivesse feito algo. Eu converso bastante, tento mostrar que ninguém tem culpa e as deixo chorar até passar”, conta.

Mas mesmo nos casos mais drásticos em que a dor dos outros beira o desespero, Maristela não se deixa afetar. Diz que criou uma “divisória de vidro”, que a impede de se abalar ou se envolver emocionalmente com o sofrimento alheio. “Pense em quantos casos eu atendo por dia. Como eu vou ajudar essas pessoas e fazer o meu serviço se eu começar a chorar com elas? Não dá”.

Maristela diz que as pessoas se assombram quando ela revela qual sua profissão. Aponta que, segundo o imaginário coletivo, uma escrivã que atende casos de suicídio deveria ser uma policial carrancuda, “amargurada”, sob uma “carga pesada”. Maristela desmente essa imagem: elegante, não abre mão de se vestir bem. Quando recebeu a reportagem, usava brincos de pérola e anéis, colar e pulseiras, todos prateados. Nem por isso se considera apegada a bens materiais.

“É claro que eu gosto de ter uma bolsa bonita, de marca. Mas se eu não tiver, eu não vou sofrer, não vou morrer por isso. Dinheiro só faz sentido se for pra fazer bem. Não se leva nada”, avalia.

“Outro lado”

Na sala de Maristela, alguns elementos indicam sua espiritualidade: um terço pendurado no mural, uma bíblia aberta sobre a mesa e uma “caixinha de pensamentos” (da qual se pode tirar papéis com frases de alento). Seguidora da doutrina Espírita, ela tem uma visão mais abrangente “deste plano”, o que a ajuda não se afetar pelas as histórias. “Eu não acredito na morte. O que morre é o corpo físico”, resume. “Eu procuro mostrar isso: que existe esse outro lado”.

Vez ou outra, o cuidado nos atendimentos acaba a aproximando dos familiares das vítimas. Alguns já retornaram para agradecer ou para presenteá-la com algum mimo – em uma das ocasiões, uma família mineira lhe trouxe um pote de doce de leite. Também houve quem se aproximasse do espiritismo, depois da conversa com Maristela.

Casos e pitacos

A familiaridade com o tema faz com que a escrivã fale com ares de especialista. Por isso, ela faz um alerta importante: todo suicida dá sinais de que está propenso a tirar a própria vida. Vê relação direta de alguns casos ao apego a aspectos materiais ou a coisas efêmeras, mas pondera ainda que não existe um fator único ou isolado que seja capaz de deflagrar um suicídio. Faz questão, inclusive, de desconstruir os casos de pessoas que se mataram “por amor”.

“A pessoa pode até deixar um bilhete, dizendo que se matou por causa de fulana, mas não foi. Se não fosse por ela, seria por causa de outra coisa”.

A maioria dos suicidas deixa cartas de despedida aos familiares – que são anexadas aos respectivos inquéritos. Em geral, tentam explicar porque resolveram tirar a própria vida, se despedem, se desculpam e deixam uma ou outra orientação. O tamanho e o estilo variam, mas quase todas evidenciam angústia e o sofrimento. É triste de se ler.

Um dos casos que mais marcou Maristela, no entanto, foi o de um jovem que sobreviveu à tentativa de suicídio. “Ele disse que nunca teve sentimentos, não entendia a vida. Mas, que se não foi capaz nem de se matar, ia estudar medicina para ajudar as pessoas”, conta.

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