De desastre nascem estatísticas. Números que assustam em suas duas pontas: o grande número de vítimas fatais e os poucos sobreviventes. Mas também nascem novos valores entre os que ficam. Gente que repensa o modo como conduz a vida após o trauma. Como o engenheiro elétrico Wagner Andolfato de Sousa, que reviu a forma de trabalhar após sobreviver a uma queda de avião na selva amazônica no Peru em 2005. Ou o jornalista Rafael Macedo, que após ajudar as vítimas de um atentado com bombas em uma viagem a Bali, Indonésia, em 2002, não vê mais as vítimas de terrorismo apenas como números. Já a estudante Jéssica Duarte da Rosa descobriu que queria ser fisioterapeuta durante o tratamento das queimaduras causadas pelo incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 2013. Três histórias de gente que sobreviveu.
Nos últimos 11 anos, o engenheiro elétrico Wagner Andolfato de Sousa, 36 anos, disse não a algumas propostas de emprego com salário melhor do que recebe. O motivo: quer distância da vida de viagens profissionais incessantes que levava, quando chegava a ficar metade do ano fora de casa.
A mudança veio em 24 de agosto de 2005, quando Wagner se tornou um dos 58 sobreviventes do voo da companhia Tans entre Lima e Pucallpa, no Peru, onde instalaria o sistema de automação de uma indústria madeireira. O avião caiu na selva amazônica, a 18 km do aeroporto de destino, matando 40 pessoas.
“O sentido das coisas mudou muito para mim depois disso. A vida continua corrida, mas agora consigo dar atenção à família e aos amigos, porque o melhor da vida não é trabalhar”, argumenta Wagner, pai de um menino de 11 anos, bebê à época do acidente.
Por volta de 15h daquele dia, o comandante avisou que o avião passava por turbulência. O engenheiro só percebeu a gravidade ao ver pela janela as árvores se aproximando. “Não deu nem tempo de pedir perdão pelos pecados. Foi tudo em segundos”.
Na colisão, o avião partiu em dois. Wagner estava três fileiras atrás de onde a aeronave rachou. Da parte da frente, ninguém se salvou.
Quando o engenheiro desatava o cinto para sair, houve uma explosão. Ele teve 28% do corpo atingido pelo fogo, com queimaduras de terceiro grau nos braços. Passou 20 dias internados no Peru e um mês no Hospital Evangélico, em Curitiba. Nesse período, foi submetido a quase uma cirurgia por dia, já que a troca dos curativos, que envolvia aplicação de pele de porco para a derme se recuperar, era equivalente a um procedimento cirúrgico, com anestesia geral.
Ao descer do avião, a chuva no lugar de refrescar as feridas, machucava. “Começou a chover granizo. O gelo batia no corpo e as bolhas estouravam. A dor era insuportável”, recorda.
Mesmo ferido, ele e duas mulheres decidiram caminhar seguindo uma cerca. No meio do caminho, um fazendeiro os encontrou e os levou a um posto de saúde. “Só tinha uma enfermeira, que ficou mais assustada que a gente. Tomei umas pílulas para dor e ajudei a medicar uma moça italiana que não conseguia abrir a boca porque tinha um buraco na bochecha de queimadura. Dava até para ver a arcada dentária”, lembra.
O pior voo de Wagner, entretanto, não foi o da queda. Foi o de transferência para o hospital em Lima. “Botaram todos os feridos em um cargueiro do exército. Fazia um barulho absurdo, tremia tudo. As pessoas começaram a gritar achando que o avião ia cair de volta”, diz o engenheiro, que lembra dos soldados tendo de algemar os desesperados nas macas.
Alguns meses depois, Wagner voltou a viajar de avião normalmente . Tanto que hoje costuma provocar um amigo de trabalho que tem medo de voar. “Digo para ele viajar comigo, porque a mesma pessoa não cai de avião duas vezes”, brinca.
Hoje, toma só dois cuidados. Primeiro: não tira o cinto de segurança em nenhum momento do voo. “Vi pessoas sendo sugadas para fora por estar sem cinto”, ressalta. Segundo: só viaja na parte de trás da aeronave, sempre nas últimas poltronas. “O avião não bate de ré, então quem está na frente tem mais chance de morrer. Além disso, vi no acidente que quem estava nos fundos não se machucou quase nada”, explica.
De trauma, teve pesadelos por um ano, além de uma cicatriz pequena de queimadura no cotovelo direito. Nada que atrapalhe sua rotina. Tanto que até hoje Wagner mora no mesmo endereço do tempo do acidente: no Conjunto Apolo, em São José dos Pinhais, vizinho ao Aeroporto Afonso Pena, de onde é possível ver bem de perto os aviões decolando e aterrissando.
Há 14 anos, o jornalista Rafael Macedo, 38 anos, não esconde a raiva quando vê notícias de atentados terroristas. “Antes eu via as vítimas apenas como números. Agora, sei como é o desespero e me incomoda muito saber que alguém pode fazer isso com outras pessoas”, afirma.
Em 2002, Rafael morava na Austrália e havia viajado à ilha de Bali, na Indonésia. Estava no quarto dia de viagem quando, por volta das 23h de 12 de outubro, ouviu uma explosão enquanto tomava cerveja com amigos recém-conhecidos na piscina do hotel. Em segundos, outro estrondo, ainda mais forte. Duas bombas haviam sido detonadas por terroristas, matando 202 pessoas.
A primeira, acionada por um homem-bomba nos fundos de uma boate, a mesma que Rafael havia ido nas duas noites anteriores. A segunda, detonada em uma van estacionada no bar da frente. “Só depois me dei conta que havia passado umas três vezes na frente daquela van no mesmo dia”, recorda.
Ambas as casas noturnas estavam lotadas e eram vizinhas ao hotel em que Rafael estava. A ação, orquestrada pelo grupo radical islâmico Jemahh Islamiah, teve ainda uma terceira explosão, próxima ao consulado dos EUA.
Os imóveis das redondezas arderam em fogo por três horas, até a chegada dos bombeiros. Nesse período, Rafael participou do resgate das vítimas. Para aliviar a dor das queimaduras, os feridos eram removidos com lençóis molhados na água da piscina do hotel. “Um dos caras que ajudei estava todo queimado, com a pele do nariz derretendo e não conseguia respirar. Sinceramente, não sei se ele se salvou”, recorda.
Inicialmente, o jornalista acreditava estar no meio de um acidente, como uma explosão causada por vazamento de gás. Só soube que era um atentado terrorista três dias depois. “Lembro que liguei para um amigo porque não conseguia falar com minha família e ele achou que fosse algo simples, como um botijão de gás que tivesse explodido. Ele mesmo me disse que só se deu conta do que tinha acontecido quando viu as notícias na TV”, afirma.
Por alguns meses após o atentado, Rafael afirma que se assustava com qualquer barulho. Chegou a desistir de assistir a um filme quando viu a cena de uma casa incendiada. Hoje, garante não ter traumas. Mesmo assim, se apega a tudo o que conquistou após sobreviver ao atentado. “Penso que tenho uma filha de 11 anos, estou aqui, trabalhando, tocando a vida e que tudo isso poderia não ter acontecido por causa daqueles terroristas”, resigna-se.
No tratamento das queimaduras causadas pelo incêndio da Boate Kiss, a estudante Jéssica Duarte da Rosa, 24 anos, encontrou a profissão que vai seguir: fisioterapia.
Uma das sobreviventes do incêndio em Santa Maria (RS) em 27 de janeiro de 2013, quando 242 pessoas morreram, a gaúcha, que mora em Colombo, região metropolitana de Curitiba, decidiu trancar o curso de administração e recomeçar a vida acadêmica. Está no terceiro ano de fisioterapia na Universidade Positivo e pretende seguir justamente na área em que foi atendida nos 30 dias em que ficou internada no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre – 27 deles na UTI, 12 em coma.
“Quero ir para a área hospitalar, principalmente em UTI. Me senti muito acolhida por todos os profissionais que participaram da minha recuperação. Não achava que esse trabalho fosse tão humano”, explica Jéssica, que perdeu o namorado, Bruno Portella Fricks, durante o incêndio.
Após a tragédia, Jéssica passou por dez cirurgias e, por um ano, fez duas sessões de fisioterapia todos os dias da semana para recuperar os movimentos dos braços - uma sessão de trabalhos respiratórios e outra motora. “A pele encurtou com as queimaduras e eu não conseguia fazer nada, nem pentear o cabelo ou escrever”, afirma.
O braço direito, onde as cicatrizes não têm mais correção, a estudante cobriu do ombro ao punho com imagens feitas por Flavia Carvalho, do projeto “A pele da flor”, que tatua mulheres vítimas de violência sexual. “Tatuei coisas que representam minha fé. E isso ajudou muito na minha autoestima. Antes, só usava manga longa para que as pessoas não ficassem perguntando das cicatrizes”, diz Jéssica, que após o incêndio se aprofundou na fé umbandista.
O incêndio não impediu a moça de se divertir. “Vou muito a boates, bares. Um ano depois do acidente, já saía de quinta a domingo”, afirma. Entretanto, a postura mudou: quando não se sente segura, não fica no estabelecimento. “Esses dias fui embora do aniversário de uma amiga porque a balada estava muito cheia e só tinha uma saída. Mas o chato é que falo de segurança para os meus amigos e ninguém dá muita bola. Entra em um ouvido e sai no outro”, lamenta.