Toda sexta-feira à noite um grupo de amigos se reúne na cozinha de uma casa do bairro Barreirinha, em Curitiba, para preparar um jantar. Podia ser só mais um programa de lazer, mas a refeição cheirosa e fresquinha tem destino certo: a comida é embalada junto com uma paçoca, três balas e um pirulito – a sobremesa – e distribuída a dezenas de moradores de rua da capital paranaense. A história foi descoberta pela reportagem da Tribuna do Paraná.
O projeto “Rango de Rua” começou há quase três anos, e funciona “sem fins lucrativos, laico e apolítico”. Segundo um dos organizadores, o recepcionista Fernando Pizzatto de Moraes, no Natal de 2013, duas amigas – não sabe o nome delas porque ainda não participava da ação –, decidiram fazer um jantar para o pessoal de rua. Juntaram alguns amigos e fizeram uma ceia. Deu certo. Como sobraram alguns alimentos, na semana seguinte fizeram uma ceia de ano novo.
Como ajudar
Quem quiser ajudar o Rango de Rua pode acessar a página no Facebook. Semanalmente, eles publicam a lista dos alimentos que serão necessários para a próxima refeição e ali explicam como as doações podem ser feitas.
Desde então, todas as sextas-feiras, nunca falhou. “Bastante gente aderiu ao projeto, que ganhou um nome, foi criada uma página no Facebook, e aí só foi crescendo”, contou Moraes, que entrou no grupo seis meses depois, convidado por uma amiga.
O número de marmitas varia conforme a quantidade de doações, mas a meta do projeto é de 150 “quentinhas” por semana. O recorde do Rango foi de 219 marmitas.
O cardápio também varia. Feijão, arroz, legumes e macarrão são os pratos tradicionais, mas, de acordo com Moraes, o preço das carnes interfere na escolha de qual será o acompanhamento. “A gente leva muito em consideração o preço da carne. Então tem semana que é carne moída, outras linguiça ou frango. E a forma de preparar a gente decide na hora”.
A comida é preparada com tanto capricho que os voluntários também aproveitam para se “abastecer” e ganhar energia para a distribuição. A reportagem da Tribuna provou e aprovou o rango. A distribuição começa assim que deixam a cozinha: no caminho até o Mercado Municipal, onde se reúnem pouco antes das 22h, já deixam alguns kits. De lá, eles vão para uma série de pontos onde os moradores se reúnem. O trabalho só termina por volta de meia-noite.
Projetos paralelos
“Nosso foco é o morador de rua, não apenas entregar a comida, mas tentar um resgate social dele”, explicou Moraes. Eles fazem isso de diversas maneiras, conforme a necessidade das pessoas. Algumas vezes, compram passagens de ônibus para que os moradores voltem para suas cidades; outras conseguem medicamentos; auxiliam com orientações sobre situações judiciais; e até tentam levar para locais de acolhimento. “Essa é uma das nossas dificuldades. Muitas vezes não temos uma instituição para oferecer. ‘Você quer sair da rua agora, cara? Te levo para tal lugar’”.
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Os voluntários do projeto buscam se aproximar dos moradores para ganhar a confiança deles. “A gente trata eles com carinho, para que eles vejam em nós amizade e, na hora que a coisa apertar, possam chegar e perguntar ‘você pode me ajudar?’. Esse é o grande objetivo de estarmos lá toda sexta, sem falha. Seja Natal, ano novo, ou feriado”, ressaltou Moraes.
A partir dessa convivência, o grupo ganhou alguns projetos paralelos ao da marmita. Um deles é o “Rango Pet” , em que são doados rações, roupinhas e até existe a tentativa de viabilizar a castração dos bichinhos dos moradores.
O grupo também busca a doação de roupas para os moradores. Segundo Moraes, há uma grande dificuldade em conseguir roupas de homens. “A maior parte dos moradores de rua, acho que uns 80%, são homens”.
Antes, as roupas de melhor qualidade eram vendidas por moradores em brechós. Por isso, os voluntários montaram um bazar, que funciona na Cidade Industrial. As roupas são vendidas ali a preços simbólicos e o dinheiro arrecadado é revertido em prol do projeto.
Outro projeto formado a partir do Rango de Rua distribui marmitas aos domingos aos moradores. A cozinha foi emprestada aos voluntários do segundo grupo, que dizem que a nova iniciativa é “filha” do Rango.
Paixão
Uma palavra muito usada pelos voluntários para definir o trabalho no projeto é “paixão”. A taxista Andreia Vanusa Silva começou doando um quilo de cenoura. No outro mês, doou arroz. E assim foi, até que conheceu a cozinha do Rango, há um ano e oito meses. “Aí me apaixonei pelo projeto e estou aqui até hoje. Gosto muito, sento para comer pinhão com os moradores de rua, e até brigo com eles”, contou.
“O que mais me motiva é a hora em que a gente entrega a marmita e vê a felicidade da pessoa. Quando ela abre, vê a comida, dá um sorriso e agradece – para mim, é a melhor parte”, comentou a servidora pública federal Ana Paula Leal Pellizon. O marido de Ana Paula, o advogado Régis Fabricio Pellizon, entrou no projeto para garantir a segurança da esposa e da filha Amanda, de 10 anos, que também ajuda. “Aí mudou, porque a não vê risco no nosso trabalho. E é muito bom poder ver de fato a alegria que o morador tem, não só de receber o alimento, mas ter alguém pra conversar”, afirmou Pellizon. “Eu aprendi que o que importa não é a beleza por fora, ou onde a pessoa mora, ou a reputação dela. O importante é ver o que elas são por dentro”, disse Amanda.
Gratidão
A “casa” de metade da vida de AL*, de 51 anos, segundo ele mesmo, foram as ruas de Curitiba. Depende do álcool, saiu de casa após discussões com familiares. “Não é nada bom, não. Você pode ver as pessoas deitadas ali, você acha que eles estão passando bem. Não estão, às vezes eles não querem nem levantar para não conversar sobre a vida deles”, respondeu, questionado sobre como é a vida nas ruas. “Me encontro sóbrio há dois meses e quero continuar assim”, conta.
AL* disse que geralmente não é “visto” por ninguém. “Se você está no chão, você é um zero à esquerda, não é ninguém. Se você se levanta, as pessoas se assustam. Se você vai abordar, te dão dinheiro, porque não querem nem conversa”. Por causa do apoio do Rango, contou, ele passou mais de dois anos sem beber e “se sustentando”. “Com essa ajuda, eu subi”. Recaiu há algum tempo, mas está se esforçando para manter a sobriedade.
A empresa em que AM*, de 45 anos, trabalhava fechou há oito meses. Desde então, ele está morando nas ruas. “É mais difícil de encontrar emprego, porque eles pedem endereço, né? Se você falar que é morador de rua, eles não dão”, lamentou. Em Curitiba, ele não tem familiares. “Eles não são daqui, são de Palmeira”. AM* se disse grato com a solidariedade do pessoal do Rango e, sobre a comida, opinou: “Joia. Muito boa. A gente não tem do que se queixar”.
*Os nomes foram abreviados para preservar a entidade dos entrevistados.
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