O elevador pára no quinto andar do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba (HUEC). "O setor de queimados?" Quando o visitante se depara com um grande banner, é ali. A inscrição funciona como as Tábuas da Lei. O mandamento mais brando é "Não abuse do sol". Os outros – todos nascidos do sangue, suor e lágrimas de quem atende 10.800 vítimas ao ano – têm tom de autoridade: nada de crianças na cozinha, de pipas, de epilépticos perto do fogão...

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Da porta para dentro, rumo ao centro cirúrgico, o banner vira quase poesia. Passa-se um pequeno labirinto, veste-se o conjunto muito largo de calça e camisa azul-escuro, cabeça e boca protegidas. Dez passos mais está o morador de rua "A". Sedado, ocupa cama de "banho", na qual recebe substâncias essenciais para vascularizar a pele. Tem mil e uma chagas. Foi atacado enquanto dormia em alguma calçada – um índio Galdino de Curitiba. A informação é de que ataques como esse são mais comuns do que se imagina. "A" se vai. É a vez de "T" – um caso semelhante.

A equipe

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Na "sala dos médicos", o cirurgião plástico Luiz Henrique Calomeno passa dados sobre o setor: 37 anos de funcionamento, 22 vagas na enfermaria para adultos, 9 para crianças, cerca de 40 funcionários. A equipe tem de ser multidisciplinar – psicólogos, nutricionistas, pessoal de ONGs. Enquanto fala, pausado, afasta a cadeira e convida cada um que abre a porta para que entre na conversa – a psicóloga Marta Bergamasco, o também médico especialista em queimados Alberto Prestes, o anestesista Ivo Lechinewsky, o pediatra José Eduardo Viana e a enfermeira Poliana Carnelos Libório, duplamente caçula no setor: tem 27 anos de idade e quatro meses nos queimados.

"Vim para cá já com meu pedido de transferência pronto. Eu tinha certeza que não ia agüentar. Mas mudei de idéia. Estou apaixonada por esse trabalho", surpreende Poliana. A conversa salta do "afogando em números" para "a razão do meu afeto". "A gente vê como eles chegam aqui. Dói assustadoramente. É um longo trabalho. Se Jesus viesse à Terra, iria passar por aqui", compara José Eduardo. Nova mudança de prosa. Às vezes, tanta luta parece invisível. A turma da saúde faz contas: 160 médicos formados pela UFPR, 160 pela PUC, 80 do Evangélico. Perguntam: "Quantos deles já passaram por um setor de queimados?" O Paraná tem 194 cirurgiões plásticos.

Wagner e Peterson

O adolescente Wagner Wanildo Brixi, 16 anos, brinca de bola no corredor da enfermaria da ala de queimados do Evangélico. Está em casa, afinal, mora no hospital há um ano. "Um ano e nove dias", corrige, desde que um churrasco com amigos, em São Nicolau, Porto Vitória (próximo de União da Vitória), resultou no acidente que queimou mais de 80% do seu corpo – incluindo o rosto. Ficou um mês na UTI, passou pela fase das infecções e por todas as resistências típicas da gravidade do estado. "Eu tinha medo dos enxertos. Tiveram de tirar pele até da minha cabeça", lembra.

No Evangélico, Wagner conheceu o catarinense Peterson Marcelo Oliveira, 19 anos, vítima de um acidente de trabalho numa fábrica de compensados. Os dois ficaram amigos e, há sete meses, depois de receber alta, Peterson tomou uma atitude rara entre os ex-internos: voltou ao hospital. Toma o ônibus em São Bento do Sul, onde mora, e vem a Curitiba fazer companhia para o colega. Há dez dias, Wagner voltou para sua cidade. Houve uma despedida emocionada nos corredores do Evangélico – dos médicos, passando por Marta, a psicóloga, e por amigos como Peterson, o amigo que estava lá. Como ele, todos sentiram na pele a agonia e a glória do garoto de São Nicolau.

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Crianças

A bola de Wagner passa perto da menina C.R.S, de 4 anos. Ela vai completar dois meses de internamento na pediatria de queimados do Hospital Evangélico. Teve o rosto, as mãos e os pés queimados num acidente doméstico, em Cascavel, provocado por uma vela. "No começo, eu fui fraca. Não conseguia vir visitá-la, pois fiquei muito assustada com o estado dela", conta a tia Rosânia Reis da Silva, uma das cuidadoras.

O lugar onde C.R.S fica é amplo, ventilado, cheio de mães que agora moram no HUEC. O clima pode ser de otimismo, como quando a garota enfaixada circula num porta-soro com rodinhas – hoje seu brinquedo. Ou tenso, quando uma mulher chora alto, esgotada, pois não sabe mais o que fazer para acalmar o filho: "Mãe, tá doendo muito."

Marlene de Oliveira, 39 anos, é silenciosa. Ela vela por W.I.K, de 9 anos, que se queimou com uma panela de feijão, depois do jantar, dia 9 de janeiro, em Colombo. O cabo ficou preso a sua camiseta e atingiu o abdome. Quando ela viu, só lhe restou a garganta para gritar. "Uma fatalidade", não cansa de repetir. O menino, no momento, se trata também de uma infecção.

Há 20 passos de Marlene, Lucimeire de Freitas Santos, de 23 anos, almoça ao lado do filho L., de 4 anos – uma vítima do álcool, dia 15 de janeiro, no CIC. Coisa de criança. "Você quer ver o fogo ficar bem alto?", perguntou uma coleguinha de muro. Queria. Com a explosão do frasco, as pernas da criança foram atingidas. "Eu só usava o produto para limpar o fogão", lamenta a mãe. Ela garante: álcool em casa, nunca mais.

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