Quando guri, cheguei a desconfiar de que era o único morador da Água Verde a não ter parentes em Campo Largo, aqui do lado. No pátio da escola, era um tal de "almocei na vó, em Campo Largo"; "passei o dia no tio, em Campo Largo". Lembro de um colega dizendo que voltou a pé, 24 quilômetros sem notar, matraqueando com os primos, depois de um fim de semana, em Campo Largo.
Crescidinho, entendi que as mesmas famílias italianas estavam dispersas pela Água Verde, Santa Felicidade, Umbará, Rondinha, e Campo Largo "tudo parente". Soube da importância que a Estrada Velha do Mato Grosso, que liga até lá, tem no imaginário dessa gente. Assim como do mítico padre Natal Pigatto, milagreiro da chuva que acumulou milhagens de poeira visitando colônias na primeira metade do século passado.
Tempos atrás, um conhecido me contou proezas do padre que fariam bradar os céus. Disse-lhe que deveria levá-las para o túmulo, pois do contrário provocaria um levante contra a blasfêmia, instalando um cisma religioso na nossa região. Já temos problemas demais. Além disso, Campo Largo é como uma irmãzinha mais nova, para quem olhamos com ternura, vendo nela o que já fomos um dia. Merece cuidados.
Suspeito que num futuro próximo os curitibanos que puderem se mudarão para lá. A rodovia é bonita. No caminho ainda se pode ver pinheiros e casas de madeira. A matriz de Nossa Senhora da Piedade é uma miniatura da Catedral de Nossa Senhora da Luz. E tem o Bar e Sorveteria do Chemin, um legítimo boteco das antigas, contrastando com os estabelecimentos de "faz de conta" que Curitiba, "a predadora", deu de inventar para purgar suas culpas.
Se bem lembra Darcy Chemin, dono de inacreditáveis 87 anos, o Bar do Chemin existe desde 1916, quando foi aberto por seu pai, Francisco. Em 1948, o estabelecimento mudou para o casarão da família Torres, onde hoje está instalado na "Praça da Matriz", Durante décadas funcionou como restaurante e hospedaria, uma espécie de Petropen da pré-história, entreposto para jardineiras vindas do Norte do Paraná. Está tudo tão intocado que dá para imaginar como era. Entrar ali hidrata a alma, como diria o poeta Fabrício Carpinejar.
Seu Darcy é homem pequeno, de narinas italianíssimas, bigode aparado, guarda-chuva à mão. Pouca conversa. A não ser que o assunto seja seu pai, Francisco. Pudera. Tinha 6 anos quando se pôs atrás do balcão pela primeira vez, assistindo às peripécias daquele legítimo fazedor da América. Francisco, lembra o filho, tinha fôlego para enfrentar cinco horas de carroça até a capital, vender 4 mil laranjas, desviar de uma boiada e voltar correndo para servir polenta na estalagem. "Ele comeu muito pão com banana antes de chegar até aqui..."
O relato deixa a impressão de que se Francisco não fundou Campo Largo, foi por puro acaso. Trabalhou até na construção da praça central, na qual plantou magnólias, e revolucionou o comércio, sendo o primeiro sorveteiro da cidade. Provas de sua passagem estão à vista: uma velha máquina para misturar o gelo e o creme ("Me dá um tostão de geada", diziam); e um rádio Phillips de válvulas da década de 1940, no qual os Chemin ouviam notícias da Segunda Guerra. "Faz um ronco. Mas funciona", garante o veterano, no que é interrompido por um cliente e sua senha. "Me dá um real".
Há garrafas de pinga com mentruz, guaco, espinheira-santa, alecrim, losna. "Não é remédio, mas é medicinal", informa a freguesia. Vende-se também cerveja e cerca de 50 unidades de salgadinhos, das 7 da manhã às 6 da tarde, incluso sábados. É certo que Darcy anda encafifado se não estaria na hora de cerrar as portas. Os 13 quartos do sobrado não têm mais mensalistas. As prateleiras andam rotas. O prédio está lavado pelo tempo. Não há lei de tombamento municipal. O bar se mantém na base da teimosia. Mas sei não a cidade vai perder parte da graça na hora em as janelas do casarão não se abrirem mais. E a graça é o domingo da vida. Vai ver era disso que meus amigos falavam ao chegar de Campo Largo.
Sorveteria do Chemin
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