O abraço de Fernando Henrique Cardoso em Lula quinta-feira (2), logo após a confirmação do fim da atividade cerebral da ex-primeira-dama Marisa Letícia, representou não só a retribuição da solidariedade prestada pelo petista em 2008 no velório da esposa do tucano, a socióloga Ruth Cardoso. Com intenção ou não, a visita também se tornou um ato simbólico para que os dois lados do conflito de ideias no país baixem o tom de ódio no debate. “Todos nós aqui temos a responsabilidade de fazer esse país se reencontrar e voltar a sorrir”, teria dito Lula a FHC na visita no Hospital Sírio-Libanês, conforme relato do jornalista Josias de Souza em seu blog no portal UOL.
Não é para menos. Desde que dona Marisa foi internada, uma onda de comentários preconceituosos, de ambos os lados, varreu a internet. O que levou grandes jornais a proibir manifestações de leitores nas matérias sobre dona Marisa ou a ter de moderar mensagens para impedir a publicação de conteúdos impróprios. Gente afirmando que a morte da ex-primeira-dama era merecida por todos os erros que o PT cometeu no país. E gente diagnosticando que a causa do falecimento era na verdade o desgosto por ver o partido que o marido fundou ser injustamente acusado, não o AVC que a acometeu.
Uma médica que vazou informações do quadro clínico da ex-primeira-dama para um grupo de médicos no Whatsapp foi demitida pelo Hospital Sírio-Libanês. “Esses fdp vão embolizar ainda por cima”, escreveu um dos médicos do grupo, em referência ao procedimento de provocar o fechamento de um vaso sanguíneo para diminuir o fluxo de sangue em determinado local. “Tem que romper no procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, escreveu o médico, que presta serviços no hospital da Unimed São Roque, no interior de São Paulo, e em outras unidades de saúde da capital paulista.
O que nem um lado, nem outro esperava era justamente que o posicionamento político ficasse à margem diante do caráter humano que a situação pedia. E justamente pelos dois principais representantes desses polos. Demonstração de solidariedade que, em se tratando de Fernando Henrique Cardoso e Lula, não é novidade.
Trinta anos antes da morte de dona Ruth Cardoso, em 2008, quando Lula em seu segundo mandato presidencial decretou três dias de luto no país e alterou a própria agenda oficial para ir pessoalmente com dona Marisa Letícia prestar condolência a FHC, o tucano e o petista iniciavam uma jornada de solidariedade que, mesmo com muitas farpas trocadas, foi conduzida tanto no âmbito político, quanto pessoal.
Na campanha eleitoral de 1978, primeiro ano das greves no ABC paulista, Fernando Henrique Cardoso, então um acadêmico renomado, decidiu se lançar na política. E para tentar uma vaga ao Senado pelo antigo MDB, o sociólogo buscou apoio do líder metalúrgico. Conduzido por Lula, FHC foi às portas das fábricas pedir votos. Em troca, o sindicalista queria que, se eleito, o candidato atendesse às demandas econômicas do Sindicato dos Metalúrgicos. Fernando Henrique Cardoso não foi eleito – como suplente, assumiria cadeira no Senado quatro anos depois com a eleição de Franco Montoro ao governo de São Paulo.
Desse encontro, brotariam as sementes da fundação do PT e do PSDB, que no futuro polarizariam a política brasileira. Mas, por pouco, ambos os grupos não viveram debaixo da mesma bandeira. Assim que a redemocratização do Brasil foi anunciada, Lula e FHC participaram juntos de uma reunião no ABC com dirigentes sindicais e intelectuais que só não levou adiante a ideia da criação de um partido por divergências em relação à liderança. Dessa reunião, partiu a turma que logo em seguida criaria o Partido dos Trabalhadores e que, quase dez anos depois, seria a dissidência do PMDB que formaria o núcleo central do Partido da Social Democracia Brasileira.
Em 1989, o PSDB não conseguiu emplacar o senador Mário Covas na primeira eleição presidencial após a reabertura política. Para tentar barrar a eleição de Fernando Collor de Melo, o recém-fundado PSDB apoiou Lula no segundo turno. O que chama a atenção é que o PMDB também se ofereceu para apoiar Lula no embate final, mas foi barrado pelo diretório do PT. O motivo: o partido de Ulysses Guimarães – que anos mais tarde seria a base dos governos do próprio Lula e de Dilma Rousseff – não estava tão próximo aos ideais do Partido dos Trabalhadores quanto o PSDB. Se não ajudou a eleger Lula, a aproximação entre PT e PSDB serviu para somar forças na queda de Collor em 1992. Ambos os partidos estiveram lado a lado na CPI que levou ao primeiro impeachmeant do país.
A eleição presidencial de 1994 marcou de vez a polarização política que durou até a saída de Dilma do Palácio do Planalto em 2016. FHC e Lula assumiram de vez o papel de linha de frente. Foram dois pleitos vencidos pelo tucano diante do petista. E muitas acusações nos oitos anos de presidência tucana, quando o PT apresentou diversos pedidos de CPI e de impeachment de FHC. Lula chegou a acusar Fernando Henrique de envolvimento no escândalo dos precatórios e da compra de deputados para aprovar a reeleição.
Mesmo assim, o presidente FHC chegou a receber Lula em visita no Palácio Alvorada em 1998, logo após vencer o petista pela segunda vez no pleito presidencial. Na oportunidade, FHC chegou a brincar que Lula estava visitando “a casa onde um dia iria morar” - o que realmente aconteceria em 2003.
Em 2002, em seu último ano de mandato, FHC iniciou uma campanha secreta para dar estabilidade no cenário internacional ao recém-eleito presidente Lula. Conforme narra o livro “18 Dias – Quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush”, do doutor em relações internacionais Matias Spektor, o tucano enviou seu ministro-chefe da Casa Civil Pedro Parente a Washington para avalizar a transição do governo para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. FHC também instruiu o então ministro da Fazenda Pedro Malan a sinalizar ao mercado a mesma mensagem.
Ao assumir a presidência, Lula chamou a atenção ao escolher para o comando do Banco Central não só um nome abalizado por FHC, como um integrante do partido que o venceu em duas eleições. Henrique Meirellles, então deputado federal recém eleito pelo PSDB em 2003 e atualmente ministro da Fazenda do governo Michel Temer, ocupou a presidência do BC em sete dos oito anos do governo Lula.
No campo pessoal, a primeira demonstração de solidariedade entre ambos veio em 2012, quando Lula fazia tratamento de um câncer na laringe. No meio da disputa pela prefeitura de São Paulo, entre Fernando Haddad (PT) e José Serra (PSDB), Fernando Henrique visitou Lula no mesmo hospital onde cinco anos depois o visitaria pela morte de dona Marisa. Poucos meses depois, entretanto, em julho de 2012, os dois voltaram a trocar farpas políticas: FHC criticou Lula por apoiar a reeleição de Hugo Chávez à presidência da Venezuela. “Sua vitória será nossa vitória”, afirmou Lula sobre o venezuelano. “Há muitas coisas que não compartilho com Lula, incluindo sua ideia de democracia”, provocou o tucano.
A troca de críticas entre Lula e FHC se intensificou em 2014, quando a Operação Lava Jato passou a investigar casos de corrupção na gestão Dilma. Em julho de 2015, Lula chegou a autorizar pessoas próximas a propor uma conversa com FHC para tentar conter o processo de impeachment de Dilma. O encontro não aconteceu e o tom subiu ainda mais de ambos os lados.
Em entrevista ao telejornal SBT Brasil em novembro de 2015, Lula chegou a afirmar que FHC teria problemas pessoais com ele. “Ele sofre com o meu sucesso. Ele devia pensar ‘o Lula não fala inglês, não vai saber conversar com as pessoas’. Mas o meu governo foi admirado em todo o mundo”, respondeu às acusações feitas por Fernando Henrique à gestão do PT. “Ele tem que lembrar que não havia investigação no governo dele”, completou o petista.
Em 2016, Fernando Henrique voltou a mirar críticas a Lula. “Eu o respeito, eu lamento, sinceramente. É sempre de se lamentar que uma pessoa que tem a trajetória que teve o presidente Lula tenha chegado a esse momento de tanta dificuldade”, destacou FHC, ao comentar acusações do Ministério Público Federal (MPF) contra o petista em setembro de 2016.
Apesar do tom acirrado das críticas nos últimos anos, as diferenças entre FHC e Lula não impediram o tucano retribuir a solidariedade que recebeu em 2008 no momento de tragédia familiar do petista. Que sirva de exemplo para quem vai dar opiniões nas mídias sociais.
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