Em certo sentido (e provavelmente só neste sentido) ser manifestante nos anos 60 e 70 era mais fácil do que hoje. Aqui na América Latina o alvo era claro: havia ditaduras a serem combatidas. Na Europa, podia-se protestar, por exemplo, pedindo aceitação de novos costumes. E em qualquer lugar era sempre possível ter palavras de ordem a favor de uma utopia, que podia por exemplo atender pelo nome de Revolução.
Hoje, a coisa é bem diferente. Por um lado, não há um inimigo claro a ser combatido. Por outro, é difícil encontrar quem ainda acredite em utopias políticas. Mesmo assim, as pessoas continuam percebendo que há algo errado, que alguma coisa deveria ser melhor. E percebem que há uma disputa que tem a ver com política. Elas até querem participar, mas não sabem como. A falta de pauta das manifestações a que estamos assistindo parece vir daí.
Já se vão mais de quatro décadas desde que o alemão Jürgen Habermas falou, em 1968, que a luta de classes havia sido domada na Europa pela social-democracia. Os mais pobres estavam em uma situação de amparo estatal que lhes garantia pelo menos o mínimo, e talvez não tivessem mais interesse em derrubar ninguém. Segundo ele, o que passou a ocorrer seria meramente uma sucessão de equipes econômicas que disputavam o governo com base na eficiência de sua atuação.
Este talvez seja o mundo em que vivemos. Uma tecnocracia em que ainda há, como sempre, quem queira fazer diferença, mesmo sem contar com uma utopia. Em que as pessoas veem o governo como uma máquina fantasticamente complicada. Entendem a política, e especialmente a parte econômica, como sendo um assunto para poucos, que assusta os leigos. Dar pitacos nisso? Quem se arrisca? E quanto é preciso saber? Quem tem tempo para isso?
Excetuando alguma discussão sobre moral (casamento gay, por exemplo), o que parece ter restado, neste mundo pós-utópico, é a possibilidade de discutir soluções técnicas para problemas de gestão. Mas como fazer uma passeata desse modo? Imaginem os cartazes: "Somos contra a banda diagonal exógena", ou "Deputado, tire a mão da minha súmula vinculante". Não parece que isso vá acontecer.
O que as passeatas dos últimos dias parecem estar dizendo é que todas aquelas pessoas se sentem profundamente incomodadas com... algo. Com alguma coisa que está no ar. Que elas sabem que deveria mudar, mas que não conseguem diagnosticar com precisão. Claro que não é bem o preço do ônibus, nem é exatamente a Copa do Mundo. Não é a Dilma, nem é o Alckmin, mas podem ser também eles. Em todo caso, é algo mais, e é preciso extravasar isso, mostrar que estamos de olho em quem deveria estar, supostamente, trabalhando para melhorar o país.
No fundo, é como se os manifestantes estivessem dizendo: "Ok, nós não sabemos o que deve ser feito, não somos especialistas. Mas pagamos a vocês, senhores gestores, uma soma considerável para que vocês se esforcem e resolvam os problemas que nos parecem importantes". Ou, traduzindo de outro modo: já que não há uma utopia possível, que pelo menos o tipo de governo que existe, e que parece ser o único viável, seja mais eficiente e não nos faça querer arrancar os cabelos de raiva.
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