Nós ainda não havíamos vencido nenhuma Copa do Mundo. A tevê não tinha chegado ao país. O presidente era Getulio Vargas. Ainda nem havia chegado a Segunda Guerra Mundial. E já em 1936, quando tentou explicar alguma coisa sobre o país, Sérgio Buarque de Hollanda afirmava que um dos problemas mais típicos de nossa cultura era que não conseguíamos distinguir direito entre o público e o privado.
Temos uma relação tão informal com o Estado que achamos que nossos governantes são pais ou mães da população. Pai dos pobres. Mãe do PAC. E ficamos tão na dependência desses padrastos que os consideramos como uma família verdadeira. E, na família, sabe-se, os limites entre o que é de um e o que é de outro tornam-se mais tênues. Portanto, o que é do Estado é meio nosso. E vamos tocando a vida assim.
Tanto tempo se passou, mas a análise continua sendo a melhor para explicar as decisões de nossos políticos em muitos casos. E de nossos funcionários públicos também. Nem todos, fique claro. Nem sempre. Mas vejamos dois exemplos bem recentes e bem locais para mostrar como "Raízes do Brasil" continua sendo útil para entender quem somos.
O exemplo número um vem da prefeitura de Curitiba, que sancionou a inusitada lei de hereditariedade dos táxis da cidade. Pela legislação, se um permissionário do serviço público morrer, quem fica com a permissão é a viúva ou os filhos. Ou seja: deram um jeito de transformar um bem do Estado (o serviço público) num patrimônio de indivíduos. O que é absolutamente ilegal, é claro.
Vale lembrar que a lei foi apresentada, aprovada e sancionada em apenas 42 dias, às vésperas das eleições. Os permissionários de táxi representam 2,2 mil eleitores, sem contar suas famílias, que são claramente beneficiadas pelo projeto. Até o fim do ano, a quantidade de interessados na lei deve subir, com a distribuição de novas placas.
Não é nem o caso de discutir o quanto isso prejudica o direito, por exemplo, de quem está de empregado no táxi há 20, ou 30 anos, ou mais, e não consegue uma placa própria. Desde os anos 1970 não são distribuídas novas licenças. As que foram ficando livres normalmente foram vendidas num mercado ilegal para o qual a Urbs fez vistas grossas até o caso ser denunciado pela imprensa.
O caso é lembrar que o que é do Estado não é de particulares. A decisão da prefeitura de sancionar uma lei visivelmente inconstitucional como essa é tão absurda que faz imaginar que o próximo passo seria passar cargo público de pai para filho. O sujeito fez concurso? Depois a vaga já é da família, pelos séculos dos séculos.
Não é difícil entender como isso influencia o exemplo número 2, que envolve o funcionalismo. Na semana passada, esta Gazeta publicou mais reportagens mostrando como policiais acreditam que os carros pagos com dinheiro suado do povão pertencem a eles para o que for. Civis e militares fazem a festa com o patrimônio público.
Compreende-se. Se as próprias autoridades dão o exemplo, é de se imaginar que a coisa não melhore nunca mesmo. Os policiais, que inclusive ainda não foram devidamente punidos pelo Estado, continuarão achando que têm todo o direito de fazer compras ou entrar num bordel com carro oficial. Público e privado viram mesmo uma coisa só.
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