Nesses tempos em que os fatos sustentam a desconfiança da população em relação ao poder público, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, é uma das exceções que confirmam a regra.
Sem vedetismo nem concessão ao voluntarismo triunfalista, privilegiando sempre a ação do coletivo, Beltrame conduz o processo de liberação dos territórios dominados pelo tráfico nos morros do Rio como um profissional na acepção da palavra e exala confiabilidade.
Pelo apoio que recebe da população local, a admiração que conquista no país e o capital político transferido ao governador Sérgio Cabral Filho, até poderia posar de herói, mas não é esse seu foco.
Para começar, não cede a mistificações. Avisa logo que o objetivo da ação executada no Rio desde 2008 com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) não é acabar com o narcotráfico. É devolver à população e ao Estado os territórios que durante 40 anos foram gradativamente capturados pelo poder paralelo da bandidagem.
"Não tenho pretensão de acabar com o tráfico. Enquanto houver consumidores haverá drogas. Meu objetivo é tirar a arma pesada das mãos dos bandidos que escravizam comunidades, porque não é admissível que um sujeito de arma na mão determine aonde vai ou deixa de ir uma pessoa", disse em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em maio de 2010.
Há quem ache pouco e cobre mais. Evidente, é preciso muito mais diante do que governantes e (por que não dizer?) governados deixaram acontecer na cidade síntese do Brasil à vista de todos.
Mas, uma construção de décadas feita na base na conjunção entre a leniência (não raro cumplicidade) das autoridades e a complacência da sociedade, não se desfaz de uma hora para outra. É preciso investimento, planejamento e, sobretudo, continuidade independentemente de quem venha a suceder Cabral.
Gaúcho, quando chegou ao Rio Beltrame se impressionou com a tolerância geral diante de uma óbvia deformação: "Há anos que se vê a Rocinha crescendo e ninguém se pergunta quais são os interesses que permitem que isso aconteça".
Na época, 17 morros já estavam ocupados. Com a Rocinha são 19. Beltrame avisava que a ofensiva era irreversível e não havia possibilidade de o tráfico retomar os territórios. "Se entrarem com 10, 15 bandidos num morro eu ponho 500 homens e corro com eles de lá."
E eles "correm" para onde? "As lideranças para seus redutos de origem, alguns são presos pela polícia antes da ocupação e o soldado que fica no morro acaba sendo preso quando vai às ruas praticar outros crimes, ou denunciado pela população que perde o medo de falar."
Já anunciava a realização de uma "segunda etapa" de cerco aos "grandes chefes".
Delegado da Polícia Federal por mais de 20 anos, com experiência no desmonte de igrejinhas do crime organizado, no primeiro governo Lula trabalhou em Brasília, participou de um grupo organizado pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para investigar o que de podre havia na estrutura da PF no Rio e assim conheceu as peculiaridades do crime na cidade.
Na opinião dele, diferente de todas as demais em termos de combate à bandidagem: "Aqui a polícia precisa atuar em várias frentes ao mesmo tempo: o crime de rua, as facções fortemente armadas, as milícias e os territórios dominados".
Chamado pelo então recém-eleito governador Sérgio Cabral Filho antes do início do primeiro mandato em 2006, fez uma exigência e foi atendido: não haveria ingerência política na nomeação da equipe de Segurança Pública.
Foram dois anos de planejamento até a implantação da primeira UPP. Um trabalho vagaroso, mas que tem se mostrado consistente. Um enorme passo no enfrentamento de um tema que afugenta governantes.
Uma coisa são as impropriedades do governador Cabral, outra é o acerto da escolha e a autonomia conferida a Beltrame.
Fez a diferença
Basta ver os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio da Silva. Na Presidência durante oito anos cada, não fizeram coisa alguma para minorar a insegurança do público que assola o Brasil.
UPP não resolve o problema? Não, mas ao menos algo se move.