Na tentativa de reduzir os problemas de corrupção na administração pública, a população mobilizou-se para barrar os políticos de ficha suja. Juntou 1,6 milhão de assinaturas para um projeto de iniciativa popular que, aprovado pelo Congresso Nacional no ano passado, passou a ser conhecido como a Lei da Ficha Limpa. Imaginava-se que, uma vez aprovada, a regra melhoraria a qualidade dos eleitos. Não se imaginava, entretanto, que essa regra, por mais simples que parecesse, precisaria ser à prova de tribunais.
Ou, melhor dizendo, à prova do Supremo Tribunal Federal.
Completamente dividida, a corte decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei do Ficha Limpa não tem eficácia em 2010. O voto de desempate foi do recém-nomeado Luiz Fux, que declarou no julgamento do Recurso Extraordinário 63.3703 que a criação de novas inelegibilidades com menos de um ano das eleições violava o artigo 16 da Constituição. Assim, a lei só vale para as eleições de 2012.
Aspecto curioso do julgamento foi a declaração do relator da matéria, ministro Gilmar Mendes, que disse que não iria se curvar à opinião pública, nem decidiria com base no clamor popular. Mendes tem razão em não decidir com base nas emoções provenientes da multidão. O dever dos ministros é proteger a Constituição, inclusive de maiorias provisórias que possam causar danos à democracia. Sempre podem existir momentos em que a população fique envenenada por ideias extremistas ou totalitárias. Entretanto, o comentário soa como um retórico mecanismo de defesa. Pois, a Lei da Ficha Limpa não é uma regra antidemocrática ou casuísta, feita para atingir um único político. Pelo contrário, veio para aprimorar o sistema político brasileiro, ao impedir políticos que comprovadamente causaram danos às instituições continuem a participar da cena pública.
Mais interessante, porém, que fazer crítica à decisão do STF é tirar lições do episódio Ficha Limpa para agir com menor risco de insucesso no processo de reforma política brasileira. Elencamos algumas delas:
1) Previsão de obstáculos. É preciso conhecer o que se passa na cabeça dos ministros. Desde que eles não sejam "metamorfoses ambulantes", saber como, e o que, pensam dá uma margem segura para que a sociedade possa entrar em cena para "contornar" eventuais posicionamentos que possam reduzir o alcance de leis que representem avanço democrático.
2) Segurança interpretativa. Com base na análise do comportamento judicial dos ministros, e com o conhecimento do apreço que parte deles possui pela análise o literal da Constituição, é possível elaborar projetos de lei que evitem "cascas de banana" interpretativas. Assim, pode-se: a) retirar do texto termos ambíguos, que permitam os ministros darem margem a interpretação diferente daquela requerida; b) incluir dispositivos que dificultem interpretação diversa daquela pretendida.
3) Acompanhamento parlamentar. Quando um projeto de iniciativa popular estiver em trâmite, deve-se vigiar as eventuais alterações incluídas por parlamentares para se manter a segurança interpretativa. No caso do Ficha Limpa, a alteração do texto feita no Senado, em que se retirou a expressão "os que tenham sido condenados", por "os que forem condenados" é a responsável por grande parte das confusões.
4) Mobilização permanente. Ficou claro que não basta 1,6 milhão de pessoas assinar um projeto de iniciativa popular e acompanhar sua aprovação no Congresso Nacional. É necessário que a sociedade esteja preparada para permanecer mobilizada e para, sempre que possível, corrigir eventuais distorções. Mantendo-se mobilizada, a sociedade poderá se tornar um ator mais ativo na construção de instituições mais democráticas e republicanas. Para tanto, além das tradicionais assinaturas dos projetos, é preciso que os cidadãos permaneçam conectados, o que é perfeitamente possível em um mundo cada vez mais articulado em redes sociais. Tal estratégia facilita, por exemplo, a mobilização por novas assinaturas de projetos, sempre que for preciso.
É engraçado, para não dizer chato, ter de agir de forma estratégica para neutralizar a sagacidade de parlamentares e a interpretação legalista de ministros do STF. Mas faz parte do jogo. Pensar a política de forma estratégica reduz os riscos de ver esforços de cidadãos frustrados na consolidação da democracia brasileira.
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