Sabe quem também era vegetariano? Hitler. Sabe quem pensava exatamente como você? Os nazistas. Nas redes sociais as discussões começam assim, simplinhas, sem muita pretensão, e acabam com acusações do totalitarismo mais perverso – e famoso – que o século 20 nos fez conhecer.
Esse modo tacanho de argumentar é mais velho que a internet. Já era conhecido desde 1990, quando o advogado americano Michael Godwin, formulou a “segunda lei” mais famosa no mundo (a de Murphy é a primeira): “Na medida em que cresce uma discussão online, a probabilidade de surgir uma comparação com Adolf Hitler ou o nazismo aproxima-se de 100%”.
O postulado de Godwin tem origem nas observações que fez sobre o comportamento dos participantes de fóruns de discussão da Unix User Network (Usenet). Ativa desde 1979, a Usenet é uma das redes de computador mais antigas ainda em uso. Em uma década de discussões em listas foi se cristalizando o entendimento de que a comparação com o nazismo surge quando um dos debatedores já esgotou todo o seu arsenal de argumentos e só pode, naquele momento, partir para a violência argumentativa. É a forma mais evidente de que já se desistiu do jogo limpo e passou para a argumentação escatológica, empregando os piores meios, a solução final.
Guardada as proporções, no Brasil, tanto os partidários da esquerda quanto os da direita fazem algo parecido quando usam comparações com a ditadura militar numa tentativa de vencer discussões perdidas. A classe média está indo para a rua? Isso aconteceu um pouco antes da ditadura. A esquerda é autoritária e falseia a propaganda, está caminhando para uma ditadura.
Hitler, nazistas e ditadura são blocos de memória. Quando cursei jornalismo, tive um professor de redação, Luiz Alberto Scotto, que usava o termo para descrever o conjunto de informações que podem ser compactadas em uma imagem ou poucas palavras. Assim, quando Gabriel Garcia Márquez por exemplo escreve, em Do amor e outros demônios, que o médico “era igualzinho o rei de paus”, ele está usando um bloco de memória que facilita a identificação do personagem.
O nazismo e todo o conjunto de sua obra – o holocausto, a propaganda de Goebbels, o apoio massivo de uma população a um regime totalitário – representa algo que a humanidade não pode relegar ao esquecimento. Em escala menor, mas não menos importante, a ditadura militar é algo que o Brasil não pode esquecer. Por essa razão são excelentes blocos de memória. Por essa mesma razão, muitas vezes são usados com leviandade.
Mais velha que as redes sociais a Lei de Godwin demonstra uma tendência da natureza humana de evoluir as discussões para a solução final. O perigo está sempre rondando as discussões, especialmente se a plateia for muito estimada pelos debatedores. E serve de alerta para que as armadilhas da argumentação não recaiam sobre nós, fazendo-nos demasiadamente estúpidos, antidemocráticos, totalitários.
Isso não significa, entretanto, o veto irrestrito ao uso desses termos – muitas das garantias foram erigidas na Constituição, para evitar o retorno de tempos sombrios. Em tempos confusos, há de se fazer exame minucioso dos fatos e emitir julgamentos ponderados, abertos à discussão e crítica, sem jamais fazer acusações descabidas.
Mais que humildade, o que necessitamos nos debates das redes sociais é aceitar que nossas argumentações sempre se completam no diálogo com o outro. Compreender essa vulnerabilidade, aceitá-la e ter dúvidas sobre os próprios posicionamentos faz parte do caminho para aumentar o nível do debate político. É agir e falar como adulto, respeitando o outro, enxergando no outro um cidadão de igual valor.
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