Entrevista
"Espera-se que Dilma concentre o foco mais nos temas internos"
Riordan Roett, diretor do programa de Estudos de América Latina da Universidade Johns Hopkins (EUA).
Agência O Globo
O governo de Dilma Rousseff estará mais voltado para as questões domésticas, ao contrário do segundo mandato de Lula, focado na agenda internacional. Essa é a avaliação do diretor do programa de Estudos de América Latina da Universidade Johns Hopkins (EUA), Riordan Roett. Ele não acredita que a relação entre os Estados Unidos e o Brasil sofra alterações importantes, mas alerta que Washington terá de se ajustar a um Brasil cada vez mais agressivo. Roett vê o Mundial de 2014 e a Olimpíada de 2016 como dois grandes desafios, tanto pela grandiosidade como pelo alto potencial de corrupção. Para ele, os recentes escândalos políticos não devem comprometer o início do governo Dilma.
Dilma Rousseff chega ao poder como um enigma. Deve a meteórica carreira política ao presidente Lula, por quem demonstra uma admiração próxima do fervor religioso. "Ele é o grande mestre que nos ensinou o caminho." Foi assim que ela se referiu ao seu patrono na política desde que assumiu o papel de candidata do Partido dos Trabalhadores.
Suceder a Lula não é tarefa fácil. O êxito na batalha para eleger Dilma é eloquente sobre seu carisma e poder de influência na política. Ele a escolheu solitário, quando ela era a opção mais improvável até mesmo pelo absoluto anonimato. Há dois anos, Dilma aparecia com apenas 2% nas pesquisas do Instituto Datafolha. Na campanha, a sombra do criador contribuiu para tornar ainda mais opaca a nuvem de ideias da criatura. Dilma superou os adversários também na produção de programas de governo. Mas com resultado nulo: entre a manhã e a tarde de uma sexta-feira de agosto, por exemplo, ela assinou ("Apenas rubriquei", disse) e registrou na Justiça Eleitoral dois programas de governo contraditórios nos fundamentos.
A recente polêmica sobre o aborto é ilustrativa de suas opções por posições sobre as quais pairam entendimentos com mais de um sentido. "Abortar não é fácil para mulher alguma", disse há 17 meses. "Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto.Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres brasileiras que morrem porque tentam abortar em condições precárias."
Às vésperas da eleição, depois de uma reunião com líderes religiosos, afirmou: "Sou favorável à valorização da vida. E eu, pessoalmente, sou contra o aborto, que é uma violência contra a mulher."
Seus discursos dos últimos nove meses sugerem que o governo teria uma premissa econômica e lançaria pelo menos duas reformas "estruturantes", como gosta de dizer. A primeira das reformas, anunciou, será no sistema político-partidário. Assim descreveu. "Vamos unir o melhor das nossas energias para fazer a reforma política. Quero dizer com todas as letras aos partidos e ao país: não dá mais para adiar essa reforma. Ela é uma necessidade vital para corrigir equívocos, vícios e distorções. Para dar eficácia ao voto do eleitor e credibilidade à representação parlamentar. Para dar transparência às instituições e garantir mecanismos reais de controle pelo cidadão da vida parlamentar. Para fortalecer os partidos, estimular o debate público e a participação popular."
Aparentemente, seria uma reforma ampla, geral e irrestrita, que poderia levar até à mudança no sistema de representação no Congresso. Mas a candidata sempre se conteve no limite da ambiguidade. A outra reforma, segundo ela, será no sistema tributário. "Nossa estrutura tributária é caótica, apesar de áreas de excelência na administração, e, se não tivermos coragem de reconhecer isso, jamais faremos essa reforma tão urgente e necessária. Entre outras coisas, vamos investir para informatizar todos os tributos. Ampliar a base de arrecadação e diminuir as alíquotas. Outra grande meta do governo Lula, que vamos completar e que foi realizada, mas iremos aprofundar, é a desoneração do investimento. Porque ele melhora o crescimento econômico."
Dilma chega ao poder dizendo-se coerente com as ideias e os princípios que defendia nos anos 70. Se alguém mudou, portanto, foram os adversários. "Não sucumbimos aos modismos ideológicos. Persistimos em nossas convicções, buscando, a partir delas, construir alternativas concretas e realistas."
Durante a campanha, elegeu alguns ícones para traçar essa linha divisória em relação aos competidores. Um deles foi a "reorganização do Estado". "Alguns ideólogos chegavam a dizer que quase tudo seria resolvido pelo mercado. O resultado foi desastroso. Aqui, o desastre só não foi maior, como em outros países, porque os brasileiros resistiram a esse desmonte e conseguiram impedir a privatização de Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica ou Furnas."
Dessa forma, para Dilma, o Estado brasileiro precisa ser "reconstituído". E repetiu essa ideia como um mantra, expressa em termos vagos como em toda evocação de uma filosofia mística. "Vamos recompor a capacidade do Estado de planejar, gerir e induzir o desenvolvimento do país. Reforçar também a capacidade de planejar do Estado brasileiro, a integração entre o Estado e o setor produtivo, setor privado, entre o governo e a sociedade. Entre o governo federal, entre o governo dos estados e dos municípios."
Preocupada em se distinguir dos adversários, acentuou a retórica estatizante e adotou símbolos como a Petrobras hoje, principal canal de investimentos do setor público.
Alguns setores empresariais seriam privilegiados. "Vamos adotar um princípio que o presidente Lula adotou logo no início do governo", avisou. "Quando o Brasil voltou a produzir plataformas aqui, deixamos de exportar empregos para Cingapura e Coreia. O princípio é muito claro e diz assim: Tudo que pode ser produzido no Brasil deve ser produzido no Brasil. Porque somos capazes, com o mesmo preço, qualidade e prazo. É para empregar e gerar renda aqui, como o presidente Lula fez, e não exportar empregos."
Sempre grata ao "grande mestre", Dilma já chegou a citar Lula 29 vezes em um discurso. Seu maior desafio é construir uma identidade à margem do patrono político. Não apenas para esclarecer o rumo e as diferenças de seu governo, mas, sobretudo, dissipar eventuais dúvidas sobre um duplo comando na Presidência da República.
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