“A praça é do povo/Como o céu é do condor.” O verso mais cantado do poema O Povo ao Poder, de Castro Alves (1847-1871), atravessou gerações como um manifesto pela liberdade e também como um lembrete do óbvio que nem sempre é tão óbvio: o espaço público é do público.
Curitiba não tem condores no céu. Mas nossos sabiás viram do alto a cidade se esquecer de suas praças. Por um tempo, o curitibano ficou com medo. Encastelou-se em casa e nos shoppings. Mas agora saiu da toca. Voltou às ruas. Isso é bom. Mas impõe desafios para o prefeito. E à população. Gente é gente, afinal. E nem sempre todo mundo entende onde termina sua liberdade e começa a do outro. É preciso reaprender a negociar o uso do que é de todos.
“A ideia de que o curitibano é fechado e não quer sair de casa não existe mais. O curitibano tem vontade de ir para a rua”, diz o arquiteto Fábio Domingos Batista, autor do livro A Cidade como Cenário, que aborda a reocupação recente de locais públicos. Segundo ele, o curitibano realmente passou um tempo longe de suas praças e ruas, a partir da década de 1980. Em busca da sensação de segurança, surfou na onda dos shoppings e dos condomínios fechados.
Mas isso vem mudando nos últimos 15 anos. Coordenadora na UFPR do Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade, Simone Rechia afirma que o fenômeno da reocupação de espaços públicos tem várias causas – inclusive o surgimento de novas formas de convivência social. Mas ela destaca duas bem pragmáticas: escassez de dinheiro e a falta de espaço. O lazer nos shoppings é muito mercadológico, e descansar sem ter de pagar faz bem ao bolso. Além disso, a cidade se espremeu e as casas vêm perdendo seus quintais e jardins. Como é preciso curtir a vida em algum lugar, a rua virou opção. E já não é de hoje. Exemplos recentes não faltam. O Parcão, atrás do Museu Oscar Niemeyer. As praças da Espanha e do Japão. A Rua São Francisco.
Os dois lados da moeda
A São Francisco, aliás, virou um microcosmo desse fenômeno. Os dois lados da mesma moeda. Renasceu com a construção, em 2014, da Praça de Bolso do Ciclista por meio de uma parceria da prefeitura com cicloativistas. De boca de fumo passou a point descolado, com bares e restaurantes da moda. A movimentação de pessoas deu mais segurança à região. Atraiu comerciantes.
Mas também provocou conflitos com os moradores do entorno por causa do barulho à noite. E houve até atritos entre os frequentadores. Para alguns, logo após seu renascimento, a rua voltou a ter “gente esquisita”. Não tardou e a polícia apareceu para fazer frequentes batidas em busca de drogas – por vezes com reclamações de excessos.
Na terça-feira passada (17), os vereadores entraram na discussão e aprovaram um requerimento pedindo que a prefeitura suspenda as atividades que promove para as crianças nos fins de semana na São Francisco. A justificativa: os pequeninos não podem ficar num local cercado de “bebidas alcoólicas, prostituição e consumo de drogas”. “Retrocesso”, reagiram os defensores da revitalização do espaço.
Algo parecido já havia ocorrido em outros casos: o réveillon fora de época da Praça da Espanha e o pré-carnaval do Garibaldis e Sacis – “expulso” do Largo da Ordem e realocado para a Marechal Deodoro – veja mais.
Nesses casos, não tem outro jeito. A prefeitura tem de meter a colher. Mas nada que seja imposto. “O poder público tem de ser o mediador”, diz Simone Rechia. Chamar os envolvidos para audiências públicas, para conversar e negociar os limites de cada um. A prefeitura também pode qualificar os espaços públicos. Garantir a iluminação, a segurança, o acesso. Onde tem muita aglomeração de pessoas, colocar banheiros químicos, por exemplo, evita que a vizinhança reclame da sujeira na manhã seguinte.
Fábio Domingos Batista faz ainda outro alerta às autoridades: é preciso evitar a tentação de “eugenizar” os espaços públicos, de afastar as “pessoas diferenciadas”. A praça, afinal, é do povo. E o povo somos todos nós.
Os 4 segredos de uma boa gestão na área de lazer
A professora Simone Rechia, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade da UFPR, afirma que Curitiba tem uma boa rede de espaços públicos de esporte, cultura e lazer que vem sendo implantada desde a década de 1970. Mas, segundo ela, em geral eles foram criados sem ouvir a comunidade, que demorou para se identificar com eles e usá-los. Em alguns casos, esses espaços fracassaram e hoje ficam às moscas. Ela exemplifica: de nada adianta um bairro ter uma quadra de basquete se os moradores querem uma pista de skate. Portanto, a dica número 1 para o futuro prefeito é: dialogue com as pessoas e saiba o que elas querem.
Simone tem também a dica número 2: dar mais atenção para espaços de lazer na Região Sul de Curitiba. Segundo ela, a maioria dos equipamentos está concentrada nos bairros do Norte. E o terceiro segredinho: pensar numa cidade para todos. Isso significa proporcionar atividades para crianças, jovens, idosos e uma população que só agora começa a deixar a invisibilidade social: as pessoas com deficiência. E, para concluir, uma quarta sugestão: destinar servidores para promover projetos de esporte e cultura. Ou fechar parcerias com entidades e escolas que façam o mesmo.
Os motivos para se investir no lazer em espaços públicos Simone tem na ponta da língua. Ao saírem às ruas, as pessoas deixam a cidade mais segura. Locais ermos são mais perigosos. O lazer também alivia o estresse. E, na ponta, significa menos gasto público em saúde.
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