Quem hoje anda por ela nem imagina. Mas nem tudo foram flores na Rua das Flores. Se cada floreira do calçadão tivesse uma boca maldita pra falar, contaria a épica história de um Davi a pé que lançou uma pedra de petit-pavé contra um Golias motorizado. O pedestre ganhou a batalha com o carro. Não sem chiadeira. Curitiba estava em confronto aberto naquele distante maio de 1972. De um lado, a prefeitura. Do outro, os comerciantes e parte expressiva da imprensa. O município queria fechar a via para automóveis. Os empresários, não. O xeque-mate veio no fim da tarde de uma sexta-feira, quando a obra começou. O calçadão foi construído num fim de semana. Nem deu tempo para reclamar. E a XV acabou caindo no gosto popular.
Mas floreiras não falam para contar a história de sucesso da Rua das Flores. E, 44 anos depois, discutir restrições para o “deus-automóvel” segue sendo sacrilégio para seus adoradores. E eles são muitos. Com direito a voto. O resultado: “o carro sempre teve muita vez na cidade”, diz a arquiteta Tatiana Gadda, professora e pesquisadora de mobilidade urbana da UTFPR e integrante do Conselho Estadual de Ciclomobilidade e do Conselho Municipal do Trânsito. “Houve um privilégio pontual na Rua XV para os pedestres.”
Por mais que os motoristas resmunguem, até hoje não há muitas restrições para o automóvel em Curitiba, afirma Tatiana. Nada que se compare ao rodízio de carros de São Paulo. Ou ao pedágio urbano de Londres. O que temos aqui são algumas canaletas e faixas exclusivas para ônibus. Um ou outro calçadão. Proibição de caminhões em determinados horários na Linha Verde. Radares. Área Calma no anel central. Ciclofaixas aqui e ali. Nada radical, enfim.
Barriguinha que “vira” congestionamento
Na direção contrária, há a pressão para dar mais espaço ao carro. “Um caminho perigoso”, diz Tatiana, que o compara ao cinto de um obeso: “Você vai afrouxando e daí tem mais espaço para crescer”. O problema é que chega uma hora em que isso vai fazer mal. No caso das cidades, a gordura são os congestionamentos.
No médio prazo, solução é evitar deslocamentos
O professor Carlos Hardt, coordenador do mestrado e doutorado em gestão urbana da PUCPR, afirma que a solução para o problema da mobilidade urbana em Curitiba passa, no médio e longo prazo, por um planejamento que diminua a necessidade de as pessoas se deslocarem. Ou seja, é preciso que a cidade tenha mais regiões “autônomas”, com comércio, instituições de ensino e oportunidades de trabalho.
Para isso, diz Hardt, é necessário pensar na lei de zoneamento como um instrumento para compatibilizar investimentos residenciais, comerciais e de serviços nos bairros.
Mas atire a atire a primeira pedra quem nunca cedeu às deliciosas tentações do automóvel. A professora da UTFPR, por exemplo, apesar das críticas, nem mesmo prescreve uma dieta radical para Curitiba. “Temos de pensar até que ponto podemos restringir o carro. Não dá para importar soluções prontas sem entender nosso contexto”, diz ela. “Talvez não precise restringir. Mas colocar algumas limitações.” O professor Carlos Hardt, coordenador do mestrado e doutorado em gestão urbana da PUCPR, concorda: “Só restringir o uso do carro não soluciona o problema da mobilidade”.
Melhor do que abrir uma guerra entre curitibanos motorizados e desmotorizados é oferecer alternativas de deslocamento: um sistema de transporte coletivo eficiente e confortável, uma rede ampla de vias para bicicletas, calçadas boas para quem quiser caminhar. Algo que seduza tanto quanto o automóvel. Ou mais.
Transporte coletivo
Outra concordância entre Tatiana e Hardt é que o sistema de transporte coletivo deve ser prioridade nessa estratégia. O professor da PUCPR elenca uma série de medidas que poderiam ajudar: novas faixas exclusivas, mais semáforos inteligentes que se abram quando um veículo do transporte coletivo se aproxima dele, aplicativo para celular que informa a hora que o ônibus está chegando (o usuário poupa tempo; pode sair de casa só quando o veículo está perto).
Hardt também afirma que é preciso discutir sem preconceito modais de transporte coletivo de maior capacidade para as linhas saturadas. Em bom português: o metrô ou algo equivalente. “Não é porque o projeto do metrô não se viabilizou financeiramente que deixou de ser uma opção”, diz Hardt. Tatiana acredita que o sistema de canaletas e de ônibus expressos ainda pode render mais. “Conseguimos tropicalizar o metrô”, diz ela. Uma solução mais barata e que funciona. “Temos de botar várias cabeças para pensar como melhorar o modelo.”
1,4 milhão de veículos...
... é o tamanho da frota de Curitiba, o que inclui carros, ônibus, caminhões e motos. Somente de carros, são 976 mil. Como a cidade 1,8 milhão de habitantes, é quase um veículo por morador.
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