Depoimentos inéditos de ex-funcionários das cooperativas envolvidas no esquema criminoso de adulteração de leite que veio à tona nesta semana no Sul de Minas Gerais indicam como o produto era fraudado e o que pode ter acontecido em outros estados.
De acordo com a Polícia Federal, duas cooperativas - Casmil e Cooperativa dos Produtores de Leite do Vale do Rio Grande (Coopervale) - colocavam água oxigenada e soda cáustica no leite que era vendido a outras empresas e aos consumidores. Em entrevista, o homem que denunciou o esquema à polícia contou detalhes sobre a fraude.
Ele trabalhou durante 20 anos em uma das cooperativas de leite envolvidas e no escândalo e disse que soube do esquema "através de depoimento de outras pessoas, os próprios funcionários começaram a falar entre si". "O pessoal estava colocando mistura no leite, soda."
Segundo o funcionário, a mistura consistia na adição de soda, açúcar, água oxigenada e várias outras substâncias, com o objetivo de fraudar o leite sem deixar vestígios.
O funcionário afirmou que, dentro da cooperativa, "vários bebiam [esse leite adulterado], outros ficavam com medo e nem comentavam muito" porque havia muita pressão e os empregados tinham medo de serem demitidos. "Para pessoas mais próximas da família, eu orientava a não beber leite, esse tipo de leite."
Investigação
A Polícia Federal começou a agir quando o funcionário procurou uma delegacia para contar tudo o que testemunhou, em julho deste ano. Na segunda-feira (22), a PF deflagrou a Operação Ouro Branco e prendeu 27 pessoas em Passos, no Sul de Minas, e em Uberaba, no Triângulo Mineiro.
O funcionário afirmou que nem todas as pessoas que trabalhavam na cooperativa sabiam da fraude. "Isso aí era para poucas pessoas que estavam usando o laticínio mesmo, para ganhar dinheiro em cima. Participar eu nunca participei disso, mas, indiretamente, a gente não gostava de adulterar o leite. Por exemplo, é alimento das crianças, das pessoas mais velhas, idosas."
Para ele, a cooperativa já vinha fazendo a adulteração do leite havia mais de um ano. A denúncia foi comprovada em menos de dois meses.
Exames feitos pelo Ministério da Agricultura em agosto, a pedido da Polícia Federal, comprovaram suspeita de adulteração do leite produzido por duas cooperativas. As amostras foram colhidas nos tanques de caminhões que transportavam leite cru.
Os laudos revelaram fraude por adição de peróxido de hidrogênio, também conhecido como água oxigenada. Treze pessoas ouvidas pela Polícia Federal acusaram um engenheiro químico, também preso na segunda-feira, de ser o autor da fórmula de adulteração do leite.
"No decorrer do interrogatório, percebemos que mais de 15 interrogados indicavam como sendo um químico do estado de São Paulo que teria fornecido a fórmula. Imediatamente representamos ao juiz federal, que concedeu o mandado de prisão e procedemos a prisão desse químico", disse o delegado da PF Ricardo Ruiz da Silva.
Adulteração do leite
As investigações da PF concluíram que o leite produzido nas fazendas era vendido para as cooperativas. Ali ele era adulterado com dois objetivos: aumentar o volume e mascarar a má qualidade do produto.
Primeiro recebia soro, que é a sobra da fabricação de queijo, muitas vezes usado para alimentar porcos. Depois se misturava água oxigenada, para matar as bactérias do leite contaminado pelo soro e aumentar o prazo de validade. Em alguns casos, também se jogava soda cáustica, para diminuir a acidez da mistura.
Para o coordenador do laboratório de Análise de Qualidade de Leite da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leorges Fonseca, há comprometimento de toda a linha e produção de agora em diante.
"Prejuízo nutricional ocorre, há comprometimento muito severo de proteínas que são consideradas essenciais para o ser humano. E conseqüentemente afetam toda a linha de produção daí para frente", disse Fonseca.
Depois do primeiro depoimento do homem que revelou o esquema do leite, a fraude foi confirmada por mais três pessoas, ex-funcionários da cooperativa Casmil, de Passos. Eles também eram orientados a adicionar produtos químicos para "recuperar o leite".
Segundo o promotor de Justiça Cristiano Cassiolato, "o cidadão que imagina estar consumindo leite, ele está consumindo qualquer outra coisa, menos o leite".
Envolvidos na fraude
Os depoimentos de dois dos principais envolvidos na fraude na Coopervale descrevem com detalhes a fórmula da adulteração: soda cáustica, sal, açúcar, citrato de sódio, ácido cítrico e água. O objetivo era o mesmo: aumentar a durabilidade e o volume do leite.
O grande mistério, para quem investiga o caso, é descobrir como a fiscalização rotineira do produto não detectou a fraude anteriormente.
Um dos ex-funcionários da Casmil acusou os fiscais do Serviço de Inspeção Federal (SIF), que é ligado ao Ministério da Agricultura, afirmando que eles sabiam do esquema criminoso, mas faziam "vista grossa".
Das 27 pessoas presas na segunda-feira, dois eram fiscais do Ministério da Agricultura. Em nota, o ministério informou que eles vão responder a processo e, se comprovado envolvimento na fraude, serão demitidos.
O homem que trouxe a fraude de leite à tona afirma que, a cada 100 mil litros de leite, a cooperativa ganhava 10 mil litros. De acordo com ele, a maior parte da mistura era composta de água, as substâncias químicas eram colocadas em pequenas quantidades.
Os dono das duas cooperativas denunciadas em Minas Gerais estão presos na Penitenciária de Uberaba (MG), mas o engenheiro químico suspeito de ser o inventor da fórmula da adulteração foi solto no sábado (27) por decisão da Justiça.
À Polícia Federal, o engenheiro disse ter trabalhado para outros nove laticínios no interior de São Paulo e Minas.
O produto
Para a professora de medicina veterinária da Universidade Federal Fluminense, Eliane Marsico, não é possível reconhecer o produto adulterado sem uma análise química.
"Tem alguma alteração de sabor? Não. Tem alguma alteração de odor? Não. Tem alguma alteração de textura? Não. Tem alguma alteração de cor? Não. O consumidor não tem o que fazer neste caso."
De acordo com o responsável pelo Centro de Intoxicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Belo, não há riscos graves para quem consumir o leite adulterado.
"Em concentrações pequenas, você pode ter, às vezes, uma sensação de formigamento na boca. Se a pessoa tiver história de gastrite, pode ter um aparecimento de sintomas e provavelmente o que pode acontecer com mais freqüência é uma diarréia posterior", afirmou Belo.
O delegado da PF informou que estão sendo coletadas a mostras de leite em todo o país para "auxiliar a população e os outros órgãos governamentais com relação à qualidade do leite hoje consumido no Brasil".
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