Ao longo do ano de 2015 acompanhamos o aumento no número de empresas – de todos os portes- que entraram em processo de recuperação judicial ou falência. Em tempos de crise, é natural que o índice se eleve.
Mas se por um lado a crise traduz um fenômeno econômico, por outro, sua solução emana de instrumentos jurídicos reconhecidos pela lei. A alienação de estabelecimento – denominado tecnicamente de trespasse – constitui uma dessas ferramentas que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei 11.101/05) oportuniza aos empresários e aos credores no caminho da recuperação da atividade ou, na hipótese de falência, para maximizar o valor dos bens.
O trespasse, todavia, ganha na Lei 11.101/2005 (artigo 60) contornos distintos daqueles imaginados pelo legislador para o período de normalidade econômica, uma vez que sua alienação decorre da vontade dos credores e visa à superação da crise, enquanto para o regime comum (tanto aquele disciplinado no Código Civil, como nos microssistemas trabalhista e tributário) o trespasse é um fator preocupante sob a perspectiva da garantia patrimonial dos credores: representa o desfazimento de ativos. Esta mudança nos efeitos da transferência do estabelecimento justifica também a modificação no tratamento jurídico do trespasse no âmbito do processo de recuperação judicial e de falência, especialmente no tocante ao afastamento das hipóteses de sucessão nas dívidas para o adquirente do bem.
Fora do âmbito do processo concursal – recuperação judicial e falência – o empresário que adquire um conjunto organizado de bens é, no mais das vezes considerado, sucessor do antigo empreendimento e, assim, herda o passivo, declarado e oculto, da atividade precedente. As dívidas trabalhistas e tributárias são as que mais preocupam por conta da sua difícil mensuração: o adquirente de um estabelecimento pode ser chamado a responder por débitos oriundos de contratos de trabalho encerrados anos antes da aquisição e por elevadas multas fiscais referentes a fatos geradores também anteriores ao trespasse. Quanto a este último ponto, uma das correntes teóricas não admitia a sucessão nas obrigações acessórias, em especial pela responsabilidade por multas moratórias e punitivas aplicadas ao alienante do estabelecimento. Porém, recentemente, o STJ, através da Súmula 554, pacificou o entendimento que a sucessão tributária abrange não apenas os tributos inadimplidos, como também todas as multas referentes a fatos geradores ocorridos até a data da sucessão. A Súmula resolveu antiga desavença sobre a matéria, porém elevará ainda mais os riscos financeiros numa transação desta natureza.
Parece intuitivo que o mesmo raciocínio não pode ser aplicado para alienações feitas no bojo de processo de falência e recuperação judicial de empresas. Os estabelecimentos adquiridos em momento de normalidade da atividade empresarial, através de contrato bilateral, podem, eventualmente, vir acompanhado de dívidas. Há, inegavelmente, um risco e este fator será ponderado no preço de aquisição. Todavia, empresas em recuperação judicial ou declaradas falidas confessam a existência de passivo superior à sua capacidade de geração de riquezas e a pluralidade de credores que depende do sucesso do procedimento judicial para recuperar o valor investido.
Sendo o passivo maior que a capacidade operacional, não faz sentido que este passivo acompanhe o estabelecimento na hipótese de alienação. Em primeiro lugar, porque a transferência de estabelecimentos (unidades produtivas isoladas) compõe o plano de recuperação e, portanto, representa uma ferramenta para reduzir o porte da empresa em crise e arrecadar recursos para fazer frente às dívidas. A venda é realizada com supervisão judicial e, deste modo, não traz receios de esvaziamento de patrimônio em desfavor dos credores.
Em segundo lugar, nenhum empresário em sã consciência adquirirá estabelecimentos gravados por débitos de elevada monta. Ou, se decidisse fazê-lo, a aquisição ocorreria por preço insignificante, desprestigiando o escopo da lei ao enumerar o trespasse como um mecanismo de superação da crise e, no caso de falência, como alternativa para preservar o valor da massa falida.
Em terceiro lugar, a transferência do estabelecimento cede não apenas bens singulares, mas uma célula produtiva geradora de riquezas e de postos de trabalho; razão suficiente para que a medida seja incentiva pelo legislador. O estabelecimento é um ativo de grande valia na medida em que sua aquisição permite o processamento imediato da atividade produtiva, agora pelas mãos de terceiros.
No entanto, as vantagens de se adquirir uma universalidade estruturada de bens – pronta para execução – são ofuscadas pelo risco da sucessão em dívidas. Os tribunais superiores, especialmente após a conclusão pela constitucionalidade do art. 60 da LRF, estão desempenhando um papel importante no fortalecimento deste mecanismo, mas é necessário que as instâncias inferiores do Poder Judiciário também se conscientizem, uma vez por todas, que o adquirente de estabelecimento (unidades produtivas isoladas) não pode ser responsabilizado pelo passivo da empresa recuperanda ou da massa falida.
Por fim, vale mencionar, que a crise erigiu uma nova modalidade de investimentos. O abalo financeiro de um empresário pode representar um ativo atrativo para o mercado e, assim, ser insumo para atividade econômica viável. É o chamado mercado de distressed assets que, no Brasil, se fortaleceu com a Lei 11.101/05 justamente pela blindagem contra a transmissão de passivos.
A aplicação do art. 60, LRF, não pode descuidar da visão econômica. Sem afastar amplamente a sucessão, qualquer legislação cria um círculo vicioso: o estabelecimento não é transmitido por receio da imposição de passivos e, como resultado, seus bens são desarticulados e desvalorizados ao ponto de não conquistarem valores suficientes para satisfação dos créditos (nem mesmo créditos trabalhistas ou fiscais). O procedimento coletivo que enfrenta o estresse financeiro da empresa, quando bem aplicado, tem potencial para enfrentar diretamente os problemas de iliquidez da empresa através de suas normas.
*Sabrina Maria Fadel Becue: mestre e doutoranda em Direito Comercial pela USP. Advogada.
*Luiz Daniel Haj Mussi: mestre e doutor em Direito Comercial pela USP. Professor Adjunto de Direito Empresarial da UFPR no Curso de Administração. Advogado.
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