A ser verdade o noticiário dos últimos dias, está a se urdir no Parlamento nacional a auto-atribuição de abolitio criminis ou de anistia aos agentes que praticaram caixa dois (eufemismo grotesco, que malbarata a gravidade da conduta) e dos crimes correlatos.
Bem por isso e com razão, já alertara a Min. Cármen Lúcia, quando do julgamento da Ação Penal nº 470: Acho estranho e muito, muito grave, que alguém diga com toda tranquilidade que ‘ora, houve caixa dois’. Caixa dois é crime. Caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira. Dizer isso perante o Supremo Tribunal Federal me parece realmente grave porque fica parecendo que isso pode ser praticado e confessado e tudo bem.
Deveras, as condutas de manter contabilidade paralela e/ou não noticiar as autoridades públicas o recebimento de receitas para fins eleitorais subsumem-se à previsão do artigo 350, do Código Eleitoral (Lei nº 4.737 de 15 de Julho de 1965), que prescreve: Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.
Nada obstante as incertezas que rondam o tema na esfera política, a simples cogitação das possibilidades causa perplexidade. São cogitações de homens públicos de um país que, historicamente, habitou-se ao insólito. Se aprovada a medida, como tem sido propalada, implementar-se-ão abolitio criminis e/ou a anistia, extinguindo a punibilidade de culpados pelos crimes em tela, encerrando os processos em curso e impedindo a persecução penal futura.
A par do non sense político que a matéria representa, parece haver manifesta afronta à Constituição Federal.
Como se ensina no primeiro ano da Faculdade de Direito, o Legislador não é livre para agir, porque o ordenamento Jurídico lhe impõe limites, formais e materiais, e, além disso, a normatividade constitucional não se exaure nos seus comandos explícitos. Ela é rica de substância valorativa.
Uma das diretrizes centrais da Constituição brasileira é o respeito à res publica (art. 1º, caput) desde a proclamação do ideal de República até a afirmação solene da Moralidade Administrativa (art. 37), passando pela imprescritibilidade dos prejuízos causados por atos de corrupção ao erário (art. 37, 5º), a Constituição reclama e clama por probidade. Mais do que isso, exige que o legislador com ela se comprometa. E o art. 14, § 9o, prescreve que: Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Nessa linha, parece só ser válida a edição de lei de anistia ou que importe abolição de crime se os parlamentares que a votarem não forem por ela beneficiados, pena de se estar frente à verdadeira lei de efeitos concretos, que, por definição, ressentindo-se do caráter de generalidade, tem destinatário certo e se submete a controle similar ao dos atos administrativos.
Com efeito, a atribuição de vantagem em nome próprio não é imoral, mas amoral e ofende a Constituição também sob o seu prisma axiológico. Por mais fluidos que possam ser os princípios constitucionais, seu núcleo serve como elemento de controle, tal como sucedeu, por exemplo, quando se barrou o nepotismo pela via da Súmula Vinculante, com base no princípio da moralidade administrativa.
Por outro lado, a abolição de crimes ou a concessão de anistia encerra procedimento que tem lugar em casos nos quais deixou de ter base social o desvalor promovido pela norma penal ou, ainda, para dar conta de grandes pactos sociais de unificação. A abolitio criminis presta-se a promover valores constitucionais e, assim, não pode violar a teleologia da Carta Magna e ser amesquinhada na sua importância, notadamente para atender a interesses inconfessáveis, de Parlamentares que editarão a norma.
Nesse diapasão, a tentativa que se faz de auto-anistia contraria na essência a Carta da República. Se aprovada, seguramente – e essa é a única esperança que resta – o Judiciário proclamará, com efeito i ncider tantum (isto é, no próprio processo e sem a necessidade de pronúncia do STF), a sua inconstitucionalidade.
E o tema é de tal magnitude que cumpre à OAB, no exercício de sua missão institucional de zelar pelo Estado de Direito, promover as medidas necessárias para debelar esse quadro de irracionalidade.
Aqui, vale lembrar o saudoso MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO que, discorrendo sobre a moralidade, asseverou: Cheguei a conclusões apavorantes. O Brasil estava no caminho errado. Provocando lesões sociais e privilegiando indivíduos e minorias desonestas.
É preciso, por conseguinte, assumir a defesa intransigente da moralidade, o que vai além de posições ideológicas e filosóficas e implica o compromisso mais elementar com a vida em sociedade. Senão, por gerações a fio, repetir-se-ão as mesmas práticas e os homens serão reféns de um amanhã que nunca chegará.
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